10.12.13

Capitão Manoel Dias de Oliveira: Parca documentação para uma longa vida

 Texto de Olinto Rodrigues dos Santos Filho

Publicado originalmente nos anais do I Encontro de Musicologia Histórica do V Festival 
Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga, JF - Centro Cultural Pró-Música, 1994.


            Falar sobre a vida do Capitão Manoel Dias de Oliveira é tarefa um tanto árida, pois a documentação sobre este compositor é um tanto parca e ainda não pesquisada até a exaustão. No princípio, Manoel Dias de Oliveira era apenas um nome em velhas partituras das corporações musicais de São João del Rei, Tiradentes e Prados e ninguém sabia sequer quando tinha vivido.


Tribuna do coro da Matriz de Tiradentes, onde Manoel Dias
exerceu a função de mestre de música.


            Parece-me que a primeira vez que o nome de Manoel Dias apareceu em letras de imprensa foi em 1915, em um discurso que o padre João Batista da Silva fez na inauguração do busto do insigne compositor sanjoanense Padre José Maria Xavier. Diz o referido padre que “José Maria conseguiu formar escola vencendo obras subscritas por Antônio dos Santos e Manoel Dias autor do Pange Lingua e Miserere... ”, opinião hoje muito contestável.


               E só em 1976-1977, por mãos do maestro Ademar Campos Filho, o nosso compositor volta a público na conferência realizada durante as comemorações do Bicentenário da Lira Sanjoanense, no dia 28 de janeiro de 1977. É nesta ocasião que se divulga a certidão de óbito de Manoel Dias, localizada no Arquivo Paroquial de Tiradentes, por Aluízio Viegas e Irmã Marina Dornas. Logo a seguir, aparece o delicioso artigo do compositor Welly Corrêa de Oliveira “O Multifário Capitam Manoel Dias de Oliveira”, na Revista Barroco número 10, em que cria uma história para o nosso Capitão Manoel Dias, com muita graça.

               Outras citações aparecem em diversas ocasiões, como em Música Mineira do Século XIX, do pesquisador e músico sanjoanense Aluízio José Viegas, no “III Seminário sobre a cultura Mineira, publicada em 1982”. Flávia Torni fez ampla pesquisa nos códices da Paróquia de Tiradentes, para sua dissertação de mestrado, trabalho que acompanhei de perto.  Hoje, Manoel Dias está definitivamente registrado na história da música brasileira.


Partitura antiga de obra de Manoel Dias de Oliveira, cedida pelo maestro 
Modesto Flávio.
             
              A Vila de São José, hoje Tiradentes, na época em que viveu Manoel Dias era uma Vila com cerca de 3.000 habitantes (1795) e uma extensa paróquia muito disputada pelos sacerdotes. Só a Vila contava com 10 sacerdotes. A tradição musical já arraigada, podemos constatar desde 1722, quando aparece citado no acórdão da Irmandade do Senhor dos Passos, em 14 de janeiro “Assim mais a música na forma acostumada...”(1) ou em 1745 onde consta “Contratar músicos a dois coros”(2). Há também ajuste com Lourenço Dias para tocar o órgão nas funções da irmandade, pelo preço de 12 oitavas de ouro ao ano, evidenciando a existência de um órgão anterior ao atual, na Matriz de Santo Antônio (3).

           Nos livros de receita e despesa dos Passos, aparecem parcelas de pagamentos diversos a música como em 1737: “Pela música 28” oitavas e 5 oitavas pelo  “Canto Xão”(4).

           Em 1756 paga–se “a música da Vila de São João 34” oitavas comprovando que os músicos atuavam em toda região de Tiradentes, São João e Prados (5).

            Na documentação da Irmandade de São Miguel e Almas aparecem pagamentos em 1730 e 40 “ao mestre Capella Cantor” a “Frei Belchior Cantor” e ainda a “música com harpa e rebecão e duas rebecas”(6). Também a Irmandade do Bom Jesus do Descendimento contrata os serviços dos músicos para as festividades que promovia principalmente a festa do Santo Nome de Jesus e a Procissão do Enterro, na Sexta-Feira Santa. Desde 1739, apareceram parcelas de pagamentos que variam de 7 oitavas a 24 oitavas de ouro, aparecendo  todos os músicos da Vila de São João e o Pe. Me. da Capela”(7). Também a Irmandade do Santíssimo faz muitos pagamentos pela música,  por anos seguidos.

             Mas, vamos a Manoel Dias de Oliveira. Além da documentação sobre sua vida ser parca e em mal estado de conservação, há uma terrível confusão para o pesquisador, pois existia um homônimo de Manoel Dias de Oliveira, também capitão e casado com uma mulher de nome parecido, Ana Maria. A de Manoel Dias de Oliveira era Ana Hilária. Em certos documentos não se sabe a quem se refere, como um mandado de pagamento da Câmara onde um deles aparece como contínuo nas festas de nascimento da princesa da Beira, em 30 de dezembro de 1793. Quanto a data de nascimento do nosso compositor há várias hipóteses, pois não há registro de batizado. Trazemos talvez a única novidade desta comunicação, que é um documento que cita a idade de Manoel Dias. Trata-se do “Rol dos confessados da Freguesia de Santo Antônio da Vila de São José”, datado de 1795, onde aparece o cabeça da família, com 60 anos, a mulher Ana Hilária com 41 anos, os filhos Maria com 25, Marcelina com 23, Francisco com 20, Manoel com 14 e José com 10, além de dois escravos Francisca de 19 anos, Miguel Angelo de 35 e um agregado João Francisco, criolo forro de 52 anos. Portanto, a data de nascimento de nosso capitão seria 1735 (8) Parece que após 1795 Manoel Dias teve mais quatro filhos, conforme informa Flávia Toni.

Rol dos Confessados da Freguesia da Vila de São José, 1795,
onde consta Manoel Dias de Oliveira e família, arquivo IHGT.


          Da vida profissional de Manoel Dias temos notícia a partir de 1769, quando aparece no livro de despesas dos Passos parcela de pagamento de 32 oitavas a ele pela música (9) e nos anos que se seguem de 1770, 1771, 1773, 1774, 1775 e 1777 continua recebendo sempre o mesmo valor com exceção de 71 que recebe 28 oitavas.

             Da Irmandade do Descendimento, o nosso compositor recebeu 12 oitavas pela música da procissão do Enterro em 1774 e 1782. Estes pagamentos devem se referir aos “quartetos vocais” atribuídos a ele, e ainda hoje cantados em Tiradentes que são: “Heu Salvator Nostri”, “Pupili”, “Cecidit Corona”, “Sepulto Domino” e o canto da Verônica “O vos Omnes”(10).

               Para a Irmandade do Santíssimo Sacramento, Manoel Dias dirigiu a música nas Semanas Santas de 1772, 1773, 1779, 1792 (11). Nos outros anos não aparece a especificação do nome de quem recebe pela música, ou aparecem outros executores.

Livro de recibos da Irmandade do Santíssimo 1779-1846, fls. 7.


                 Nas funções da Irmandade de São Miguel e Almas, Manoel Dias recebe 8 oitavas de ouro em 1775. Para as outras irmandades sediadas na matriz ele deve ter trabalhado também, embora não haja documentação sobre o assunto nas confrarias do Terço e Nossa Senhora da Conceição. Na Irmandade da Caridade há um termo de entrada de irmão de Manoel Dias, e ele sendo irmão, deveria pagar os anuais e jóias com música, como era usual. Na Irmandade das Mercês não encontramos nenhum pagamento a ele; na São João Evangelista onde era irmão, deve ter pago também com música.

           Sabemos também, através do Maestro Ademar Campos Filho e de Aluízio Viegas, que ele atuou em Prados e São João del Rei. Aliás, consta na documentação da Irmandade dos Passos em São João, em um inventário de 1812; “o aparelho de Música para as vias sacras do Senhor dos Passos composto por Manoel Dias e dois coros, com oito solfas das vozes, duas ditas para as flautas, uma para as trompas, duas para violinos e duas para o rabecões “hum aparelha a dois coros para o Miserere.” Deve tratar-se, portanto, dos motetos de Passos e o Miserere que eram executados durante a procissão e após o sermão (12).

               No livro primeiro de despesas do Santuário do Bom Jesus de Matozinhos de Congonhas, consta alguns pagamentos ao nosso compositor, pela música no Jubileu do Senhor de Matozinhos. Infelizmente não tive tempo de copiar esta informação, pois o livro se encontra na Cúria de Mariana e não posso precisar a data exata, mas foi na década de 1780.

Gazeta do Rio de Janeiro, 1816. Relato das Exéquias de D. 
Maria I, na Matriz de Santo Antônio, Tiradentes, quando 
foi executada música de Manoel Dias.


                Manoel Dias pertenceu a duas irmandades localizadas em São José. Em 1752 foi recebido na Irmandade de São João Evangelista dos homens pardos, em cuja igreja veio a ser enterrado (13). Em 1762 entra para a Irmandade de Nossa Senhora da Piedade da Caridade, sediada na Matriz, que recebia a todos, sem distinção de cor ou classe social. Consta “Manoel Dias de Oliveira músico” e diz que “este irmão fica remido pela obrigação em que consta em assistir (com) música a todas as solenidades desta venerável Irmandade”; em 1769 também entra para a mesma irmandade “Anna Hilária, mulher de Manoel Dias mestre de música nesta Vila, “ ficando também remida certamente porque o marido assistia com música a irmandade (14) Para a mesma irmandade entra em 1791 Francisco de Paula “filho do Capitão Manoel Dias de Oliveira músico” e  em 95 entra para a de S. João Evangelista e diz que pagou “a entrada com cantar ou tocar na festa da colocação”. Consta que morreu em 1829 e se em 1795 tinha 20 anos, nasceu, portanto, em 1775 (15). Este filho de Manoel Dias, que também foi músico, pode facilmente ser confundido com outro Francisco de Paula, filho do entalhador Salvador de Oliveira e também músico, que foi organista da Matriz. Este aparece em 1795 no Rol dos Confessados, com 28 anos, pardo e solteiro (16). Há ainda um registro de casamento de Francisco de Paula Dias de Oliveira filho de Manoel Dias e Anna Hilária, com Anna Balbina da Conceição, em 22 de julho de 1798 (17).

               Está ainda por determinar quem foi este Lourenço Dias, que foi organista da Matriz, na década de 1750 e que parentesco tinha com Manoel Dias. Seria um irmão? Em 1802 ele ainda estava vivo, pois aparece como testemunha no casamento de Estêvão Dias de Oliveira, outro parente de Manoel Dias, com Ana Cardozo da Silva. Infelizmente, como eram segundas núpcias, no Assento não consta os nomes dos pais deste Estêvão Dias de Oliveira, que poderia ser um irmão mais novo ou um sobrinho.

              A outra função de Manoel Dias era de calígrafo, o que parecia fazer nas horas vagas. O primeiro documento copiado por ele é o compromisso da Irmandade de Nossa Senhora das Mercês dos pretos crioulos da Vila de São José, datado de 1768 e assinada “Mel Dias” na folha de rosto. É um belo trabalho de caligrafia com vinhetas a bico de pena, copiada dos manuais portugueses para este fim. Depois aparece em 1784, um recibo passado à Irmandade do Bom Jesus do Descendimento de 17 oitavas de ouro pela cópia do compromisso daquela irmandade, incluindo as letras principais, papel de olanda, veludo, fitas e encadernação. Este documento se perdeu (18). Em 1789/90 ele recebe da Irmandade da Boa Morte da Borda do Campo (hoje Barbacena) 14$400(quatorze mil e quatrocentos reis) por escrever o compromisso, em papel de olanda e mandar fazer as letras douradas. Este documento ainda se conserva no arquivo daquela irmandade e o localizamos recentemente. A letra aqui já não é tão firme como no das Mercês, mas continua muito regular e redonda (19).
Livro de Compromisso da Irmandade de N. Sra.
 das Mercês, 1768, copiado por Manoel Dias

                  Segundo informações do Maestro José Maria Neves, encontra-se no arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa, o registro da patente de Manoel Dias como “Capitão da ordenança de pé dos homens pardos libertos do Distrito de Lage da Freguesia de São José do Rio das Mortes”, passada em 1772, em conformidade com a real ordem de 22 de março de 1766. Certamente a confirmação é muito posterior a nomeação pelo Capitão General Governador de Minas, pois em 1769 ele já usava o título de capitão. O documento ainda diz que não recebe soldo. Sua praça é hoje a cidade de Resende Costa (20). Finalmente Manoel Dias morre aos 78 anos, de doença do peito, certamente tuberculose, sem grandes posses, pois não deixou testamento e parece que não foi inventariado, pois nós não localizamos nada até hoje.


Livro de Compromisso da Irmandade de N.
Sra. da Boa Morte de Barbacena,  1790.


                     Pelo assento de óbito confirma-se a sua cor parda e nos informa que foi enterrado na campa de número dois, da igreja dos Pardos de São João Evangelista; bem aos pés do nicho de Santa Cecília. É interessante notar que a Irmandade de São João Evangelista abrigou uma grande quantidade de músicos nos seus quadros e é a única igreja de Tiradentes em que existe a imagem de Santa Cecília. Seria uma irmandade informal dos músicos mulatos? Pelo mesmo assento, também sabemos que Manoel Dias teve ofício fúnebre a dois coros de música, talvez de sua autoria. Como se trata de documento importante, transcrevo-o aqui

“Aos dezenove dias do mês de agosto de mil oitocentos e treze faleceu com todos os sacramentos, de moléstia do peito o Capitão Manoel Dias de Oliveira, pardo, casado com Anna Hilária, mestre compositor de música, amortalhado em hábito de São Francisco, aos vinte do dito mês e ano teve ofício digo aos vinte e hum do dito mês e ano se lhe fez ofício, com os sacramentos digo sacerdotes que se acharão a dois coros de música encomendado pelo segundo coadjuntor Revdo. Ronaldo Bonifácio Barbosa Martins, e sepultado dentro da capela de São João Evangelista em cova de número duas de que para constar fiz este assunto que por verdade assignei o coadjuntor João Miz Lopez” ( 21).
Livro de Assento de Óbitos da Matriz de Tiradentes, 1812 -
1828.  fls. 10 vo.
             Não vou falar aqui de suas composições musicais, porque não é de minha competência, mas segundo o Aluízio Viegas, já temos identificadas mais de 40 peças de sua autoria ou a ele atribuídas e me parece que a única peça autografada de Manoel Dias é “Tractus, Paixão e Bradados de quarta feira santa, datado de Vila de São José 12 de março de 1788,” hoje no Arquivo Curt Lange, depositado no Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, certamente originário do Arquivo da Orquestra de Joaquim Ramalho. Também são originários da mesma Orquestra os “Motetos de Passos a oito vozes” (cópia de 1889) e os “Tractus e Bradados de sexta feira da Paixão a 4 vozes” ‘copiados por Oswaldo Fonseca e João Evangelista Bernardes em 1923 (22).


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  NOTAS


(1)                Livro de acórdãos dos Passos 1722-1829- fls. 2
(2)                Idem fls. 14
(3)                Livro de Acórdãos dos Passos- 1722-1829-fls. 28- Acórdão de 1758.
(4)                Livro de Receita e Despesa da Irmandade dos Passos- 1725-1849-fls. 12 e 14 vo.
(5)                Idem fls. 52.
(6)                Livro de Receita e Despesa da Irmandade de São Miguel e Almas- 1730-1881- fls. Sem número.
(7)                Livro de Receita e Despesa da Irmandade do Bom Jesus do Descendimento-1730-1767- fls 19-25 e outras.
(8)                Livro de Rol dos Confessados da Vila de São José- 1795- fls.- sem número do Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes.
(9)                Livros de Receita e Despesa da Irmandade dos Passos-  1725-1785-fls.84 vo.
(10)             Livro de recibos da Irmandade do Bom Jesus do Descendimento- 1776-1860-fls. 4 vo e7 vo.
(11)             Livro de Receita e Despes da Irmandade do Santíssimo Sacramento- 1761-1797-fls. 62, 83 vo, 125.
(12)             Livro de termos de entrada de irmãos da Irmandade  dos Passos e inventário- 1812-1856- fls. 206- Arquivo Paroquial do Pilar de São João del Rei.
(13)               Livro de termos de entradas da Irmandade de São João Evangelista- 1765-1790- fls. 9 vo.
                                              “1765”
                          Aos 2 dias no mês de janeiro de 1765 nesta vila de São José da Comarca do Rio das Mortes, estando  preze. Manoel Dias de Oliveira por me foi pedido queria acentar-se nesta venerável Irmandade de São João Evangelista e como com efeito se acentou se obrigou as disposições do compromisso da mesma irmandade declarando também (...) já  e noutra ocasião acentado por irmão da mesma aos 27 dias do mês de junho de 1752 como consta no livro velho viciado de que fiz este termo em que comigo assignou.
                      Estevão Feres dos Santos
                      Manoel Dias de Oliveira
                      Faleceu no dia 20 de agosto de 1813”.
(14)             Livro de termo de entrada de irmãos da Irmandade da Caridade 1758-1817- 59 vo. E 71 (?)
(15)              Livro de entrada de irmãos da Irmandade de São João Evangelista- 1790-1806- fls. 28.
(16)             Rol dos Confessados, documento já citado.
(17)             Livro de Assentos de Casamentos – 1784-1819-fls.119.
(18)             Livro de Recibos da Irmandade de Bom Jesus e Descendimento 1776-1860- fls. 9 vo.
(19)              Livro de Receitas e Despesas da Irmandade da Boa Morte da Borda do Campo (Barbacena) 1789-1836- fls. 2.
(20)              José Maria Neves, texto do Encarte do Disco da Orquestra Ribeiro Bastos- Festas de Passos em São João del Rei.
(21)              Livro de Assento de Óbitos da Matriz de Tiradentes – 1812-1828- fls.10 vo.
(22)              Acervo de Manuscritos Musicais – coleção Curt Lange. Museu da Inconfidência, Ouro Preto Ed. UFMG, BH, 1991, pag. 48 e 50.