Olinto Rodrigues
Santos Filho
Grandiosa e pomposa foi a
cerimônia das exéquias da rainha de Portugal Dona Maria I, a louca, na matriz
de Santo Antônio da Vila de São José do Rio das Mortes, atual cidade de
Tiradentes. O ato realizado pelo Senado da Câmara parece que teve especial
pompa por se tratar da primeira pessoa da família real portuguesa a morrer em
solo brasileiro e justamente a pessoa da monarca, que por ironia do destino foi
responsável pela condenação de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, à
forca e esquartejamento.
Para a cerimônia das exéquias que
era constituída por uma missa de réquiem (missa pelos mortos), sermão alusivo
ao personagem falecido e ofício de nove lições (ofício de defuntos) e
encomendação do túmulo.
Antes da cerimônia
cívico-religiosa, o senado da câmara realizava o ato de “quebra escudos”, que
se constituía em um ato público, em alguns lugares determinados da via pública,
onde os soldados da milícia, ao rufar dos tambores de guerra, literalmente
quebravam o escudo d’armas do monarca falecido. Esse costume foi instituído desde
a morte de Dom João I, mestre de Avis, perdurando até a morte de Dom Pedro V,
em 1861, no território português.
Também ao final das cerimônias
internas da igreja, os regimentos de infantaria e cavalaria, postados no adro
da igreja matriz procedia a salva de doze tiros, usual em várias cerimônias e
ainda hoje usada em enterro de militares.
Para cerimônias de pompa fúnebre
de Dona Maria, a louca, a câmara contratou o pintor mulato Manoel Victor de
Jesus (1755-1828), autor das pinturas do órgão e sacristias da matriz para
idealizar e executar um cadafalco ou mausoléu simbólico que costumeiramente era
armado nas igrejas para as exéquias reais e outras de importância. Por exemplo,
em 1892 foi armado um mausoléu com “o retrato” de Tiradentes, para a missa de réquiem
do centenário de morte do mártir, na mesma igreja.
Capela Mor da Matriz
de Tiradentes onde se ergueu o mausoléu para as Exéquias de Dona Maria
Manoel Victor de Jesus concebeu
um monumental mausoléu, descrito com detalhes em matéria publicada na Gazeta do
Rio de Janeiro, em 06/06/1816. O
cadafalco foi montado no centro da capela mor “rico, soberbo e aparatoso”, com
quarenta palmos de altura, ou cerca de oito metros. Era constituído por
elemento quadrado em quatro degraus, sendo o último troco piramidal, onde se
apoiava uma almofada de veludo preto com franjas de ouro e prata, com um cetro
e uma coroa real. Nos ângulos havia quatro colunas “áticas”, remetendo à
antiguidade clássica, que eram superiormente fechadas por uma arquitrave ou
cornija com seus relevos. Todo o mausoléu era revestido de pano preto, decorado
com galões e franjas de ouro e prata. Entre as colunas pendiam festões de pano
preto com galões e borlas de ouro. Cobrindo todo o mausoléu havia um baldaquino
fixado no florão central do forro da capela mor e dele pendiam cortinas negras
que iam se prender nas quatro colunas do retábulo do altar mor, ornadas com
franjas e galões de ouro. O mais interessante e que, aliás, era comum nesses
mausoléus, era a colocação de quatro esqueletos humanos nos cantos, junto ás
colunas, para lembrar a efemeridade da vida, mesmo do monarca. Geralmente o
esqueleto era montado com ossos humanos, desenterrados, limpos e
caprichosamente unidos. Cada esqueleto trazia nas mãos um lenço em sinal de
pranto.
As exéquias barrocas por si só,
já tinham grande suntuosidade, e em se tratando de exéquias reais eram sempre
cobertas de mais solenidade, onde a arquitetura efêmera era um dos componentes
visuais de grande importância, aliás, a música, a sermonística, e aos ritos
oficiais.
A cerimônia foi realizada pelo
vigário da igreja matriz, que nesta época era o Padre Antônio Xavier de Salles
Matos, que ficou na paróquia durante trinta e três anos, coadjuvado por outros
tantos sacerdotes e acólitos, usando os paramentos negros, como casula, estola,
manípulo e para a encomendação o pluvial negro com seus galões e franjas de
prata. Muito insenso e muitos círios davam o clima funebremente místico ao
templo dourado.
A literatura acima aludida
entrava em cartelas ou tarjas dispostas nos degraus do mausoléu, onde se viam
frases latinas em louvor a memória da monarca falecida.
Retrato de Dona Maria I |
Sob os pedestais dos esqueletos
estavam fixadas cartelas com sonetos produzidos pelos intelectuais da Vila,
obras que infelizmente se perderam nas brumas do tempo e ainda nos lenços dos
esqueletos apareciam frases latinas referentes às qualidades da rainha morta.
Além dos sacerdotes e acólitos
com seus paramentos negros, o senado da câmara incorporado, assistia a
cerimônia vestidos com amplas capas pretas cerimoniais, mas agora do luto
oficial, decretado por dois anos, e portando as suas varas, símbolo da
dignidade do cargo de vereador. Outras autoridades ocupavam o templo, como
meirinhos, tabeliães, porteiros do senado, e toda a milícia uniformizada e
incorporada.
Após a missa de réquiem foi
proferido o sermão ou “oração fúnebre” com o tema “Mortua est tibi Maria et
sepulta in eodens loco” retirado do livro dos Números, capítulo 20, versículo I
. O pregador foi padre Manoel Joaquim Ribeiro, professor de filosofia da Vila
de São José.
Túmulo de Dona Maria I na Basílica da Estrela em Lisboa |
Por fim a que se citar a música
executada na missa e encomendação “composta pelo raro engenho do capitão Manoel
dias de Oliveira”(1735-1813). Da missa de réquiem não se conhece a partitura
deste compositor de grande renome atualmente, mas a encomendação poderá ter
sido a que compôs para a Ordem Terceira do Carmo e que no geral o texto não
varia. Há que se pensar que Manoel dias era ainda figura muito viva na memória
da Vila, pois havia morrido á três anos. Manoel Dias era um músico que atuava
na região, como mestre de música, tendo
com posto várias peças para diversas solenidades religiosas da Vila. Ainda hoje
são entoados o seu Miserere na procissão de Passos, os quartetos vocais para a
procissão do enterro na sexta-feira santa e o Pange língua na missa de
quinta-feira santa.
É pena não nos ter chegado o
texto da oração fúnebre e os sonetos em louvor à primeira rainha a morrer em
solo brasileiro.
Quanto ao Manoel Victor de Jesus,
pintor de grande talento, que deixou na região um conjunto de obras de gosto
rococó em várias igrejas: matriz de santo Antônio, igreja Nossa Senhora do
Rosário, Igreja Nossa Senhora das Mercês, Nossa Senhora da penha de França e
matriz do Pilar de São João del Rei. Para o senado da Câmara, além do referido
mausoléu, ele havia pintado o teatro, e um retrato de Dom João VI para a sala
de sessões, obras hoje perdidas.
Pintura de Manoel Vitor autor do mausoléu |
Era usual contratar grandes
artistas para montar os ricos mausoléus para as exéquias reais e bons exemplos
são os erguidos em Lisboa e Roma para as exéquias de Dom João V, e em Minas
Gerais o eregido na matriz de São João del rei, em 1750, para o mesmo evento do
qual existe um registro em gravura. O mausoléu erguido na matriz do Pilar de
Ouro Preto, pela mesma ocasião foi contratado pelo entalhador Francisco Xavier
de Brito e incluía as esculturas representando as virtudes.
Como exemplo da instituição de
luto oficial pela morte dos monarcas, transcrevemos um edital da câmara datado
de 1781, referente ao falecimento de Dona Mariana Vitória de Bourbon: “ o juiz presidente, etc...Fazemos saber aos que nosso
presente edital virem que por haver falecido a fidelíssima senhora rainha mãe,
determina a sua majestade aos vassalos deste termo que...de luto os seis meses
e porque nos consta que os mercadores
pretendem levantar o preço das fazendas pretas em atenção à precisão de ...para
o referido luto, mandamos que todo aquele mercador que alterar o preço das
referidas fazendas seja preso na cadeia desta Vila, de on de não sairá sem
estar trinta dias e sem que primeiro pague seis oitavas de ouro e as mais
despesas. Dado e passado em 23 de maio de 1781”.
(Herculano Veloso-
Ligeiras memórias sobre a Vila de São José, Belo Horizonte, imprensa oficial,
1955, pagina 74-75)
Mausoleu
erguido na matriz do Pilar de São João Del Rei por ocasião da morte de Dom João
V avô da rainha Maria I
Mausoleu erguido na matriz do Pilar por ocasião da morte de Dom João V avô da rainha Maria I |