Pintura óleo sobre tela de Fernando Pitta, 1984. |
Povoando a nossa infância em Tiradentes, aconteciam os fogos das festas tradicionais que a todos encantavam. Estes fogos de artifício, foguetes e rojões eram pacientemente fabricados numa “foguetaria”, pequeno barracão, que dava para a “praia”, nos fundos da casa de Antônio Gomes. “Sontonho Fogueteiro”, figura doce de bom velhinho, cabelo branco, curvado sobre o próprio corpo, devido a um acidente na foguetaria, lá pelos anos 20, era uma espécie de homem dos sete instrumentos. Fazia tudo que a habilidade manual proporciona: foguetes, consertava sapatos, fazia e consertava santos, guarda-chuvas, ou melhor, chapéu-de-sol como se chamava naquelas época, pintava, fazia caixão para os pobres defuntos, cobertos de pano roxo ou branco, conforme o estado do falecido, restaurava os toucheiros das igrejas, fazia túmulo com lápide em cimento relevado em caracteres e flores ingênuas. Misturava com ciência, gosto e dedicação os pigmentos naturais para produzir os melhores ocres e sangue-de-boi para colorir suas janelas. Este era um dos ofícios que nos encantava, porque enquanto ele socava e peneirava os pigmentos, ia nos dizendo como ficaria as cores que ele havia aprendido a fazer com um certo pedreiro que todos os anos, pela Semana santa, “limpava” as fachadas do casario colonial de Tiradentes. Seu lema, que era uma máxima do tempo de nossos avós, “a pressa é inimiga da perfeição”, seguia a risca pois levava anos para terminar qualquer trabalho.
Aspecto da abertura da exposição, 1987. |
Por ocasião da Festa de Passos, esmerava-se na armação do Passo da Cadeia, com velho setiais, sanefas e frontais do século XVIII, guardados com cuidado religioso. No Natal, enchia nossos olhos com um presépio dos mais encantadores. A função começava com o plantio de arroz em latinhas de marmelada para enfeitar a montagem, depois vinha a confecção das serras com sacos de amiagem ou de papel grosso, onde se espalhava grude de polvilho e depois salpicava o carvão socado, areias coloridas (branca, rosa, amarela e preta) e malacacheta. Terminado os preparativos, fazia a estrutura com mesas e armação de madeira, guarnecida com ramos de murta, recoberta com um pano azul estrelado, formando a abóboda celeste, e o fundo com serras e uma paisagem de Belém de Judá, pintada por ele. Finalmente, colocava as peças e salpicava areia branca entre os musgos e orquídeas já colocados.
Queima de fogos na abertura da exposição, feita por João Goulart Silva |
Mas o ofício mais importante pela sua expressão de arte popular da maior pureza e ingenuidade era sua profissão de santeiro e pintor. Produziu poucas peças durante toda sua vida e praticamente quase todas para seu próprio deleite e uso particular. Destaca-se na sua obra um presépio, hoje incompleto, baseado nas peças de um conjunto setecentista em terracota, pertencente a “Sá Cota Velozo” (Maria José Velozo), que hoje lamentavelmente se encontra em São Paulo, no Museu dos presépios. As figuras principais (Nossa Senhora com o Menino, camelos dos Magos, guardador de gado) foram copiadas daquele presépio, mas com um tratamento pessoal de gosto ingênuo. A estas figuras principais (os reis foram vendidos por ele mesmo a um turista), ele acrescentou figuras de sua imaginação de delicioso naif: a camponesa, com a saia ligeiramente levantada e seu cestinho; o pescador, com vestes contemporâneas; a “entrevada”, com as pernas cobertas por seu vestido de gola alta, baseada em uma figura do cotidiano tiradentino; o pedidor de esmolas, com seu pires; o cego tocador de flauta; e os bichos tradicionais do presépio (carneiro, vaca e burro). Neste presépio, existia ainda um “negrinho” feito a semelhança de seu empregado, infelizmente esta peça desapareceu. Produziu ainda para a Capela de Nossa Senhora do Pilar do Gaspar uma imagem de Nossa Senhora da Saúde e um São João Batista, estáticos, quase hieráticos, com seus rostos ingênuos e olhos grandes. Deve ainda existir uma outra peça com particulares e capelas.
Aspecto da abertura da exposição, 1987. |
Outro lado da produção do velho Antônio Fogueteiro, ainda mais deliciosamente popular, são os panos pintados: o já citado painel de fundo do presépio com uma Belém, provavelmente baseada em estampas antigas e os quadros para os fogos de artifícios, diversos santos, uns pintados, outros colagens com complementos de pinturas, todos gastos pelo uso e escurecidos pelo fogo. Os fogos eram em pequena quantidade, poucas cores, mas de execução esmerada e durante cerca de 50 anos serviu a todas as festas de Tiradentes e capelas rurais. Confeccionava todos os anos o “Judas” era queimado na Praça do Chafariz, para este acontecimento era montado um ambiente chamado de “Chácara do Judas”. Mas o seu maior prazer era atear fogo ao foguete e acompanhar sua trajetória, com os olhos emocionados, até abrir-se em lágrimas coloridas.
Fotografia de Antônio Gomes |
Na sua vida, marcada sempre pelo bom humor e cordialidade, foi presidente da Conferência der São Vicente de Paulo da Igreja do Rosário e delegado de polícia. Nasceu em 1895 e faleceu em 1978.
Olinto Rodrigues dos Santos Filho - Sócio do IHGT
(Texto escrito para a exposição promovida pelo Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes
entre 18/07 a 20/08/1987, no Sobrado Ramalho)
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