Os ideais republicanos da Inconfidência ‘ontem’ e ‘hoje’¹
sócio David I. Nascimento
Com certa frequência nos atentamos à democracia como fator
único, primordial, para a política. Em casos como esses, focamos em certa
crença de que a reunião em “assembleia” durante uma eleição, votar em certos
candidatos que assumirão a representação popular, seria suficiente para
resolver os problemas da sociedade. De um modo geral, embora a Democracia deva
ser constantemente defendida (e repudiados quaisquer ataques que visem diminuir
a participação popular na escolha de políticos e partidos), é preciso salientar
que existem outros elementos que também deveriam ser considerados por todos
nós, em especial a ideia de República.
Desde a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889,
o Brasil sofreu mudanças significativas norteadas pela questão republicana,
sendo uma delas as duas alterações do seu nome e, depois, seis mudanças
constitucionais. Após 1889, o país adotou como nome “Estados Unidos do Brasil”,
uma clara referência ao país norte americano. Só posteriormente, em 1967,
durante a ditadura militar, adotou-se o nome “República Federativa do Brasil”.
Quanto às constituições republicanas, instituídas a partir de 1891, dois anos
após a Proclamação da República e fim do governo provisório, cada uma delas
marca a tentativa de fundar ou refundar a república:
Primeira
República, de 1891 a 1934; Segunda República, de 1934 a 1937; Terceira
República, de 1937 a 1946; Quarta República, de 1946 a 1967; Quinta República, de
1967 a 1988; Sexta República, a partir de 1988.
Por tantas ligações com a temática, caberia observar que a
questão republicana seria bem mais antiga que as primeiras repúblicas
americanas, remontando a influências greco-romanas, e tendo como um dos
principais nomes o romano Marco Túlio Cícero (106 – 43 a.C.). Cícero, eleito
cônsul romano, viveu em Roma durante seu período republicano (509 – 27 a.C.),
tendo ele próprio escrito sobre a república e sobre os necessários
desprendimentos e virtude política em favor da pátria.
Retornando ao contexto brasileiro, mais especificamente ao
período do Brasil colônia, o republicanismo foi tema de discussões de um dos
principais movimentos políticos ocorridos no país, a saber, a Inconfidência
Mineira. Embora este seja um tema presente nos livros de História das escolas, a
amplitude da Inconfidência, seu simbolismo, bem como os elementos que
possibilitaram a trama dos participantes continua sendo fonte para importantes
e necessárias pesquisas. Dão indício, sobretudo, sobre os primeiros elementos
filosóficos de uma corrente política e aquilo que deles foi extraído e
compreendido.
Com a queda da produção aurífera (e o endividamento dos
mineradores e contratadores), a “administração” portuguesa havia planejado
instaurar a Derrama. Para parte da administração portuguesa, incluindo o então
governador da Capitania das Minas entre os anos de 1783-1788, D. Luís da Cunha
Meneses, a razão para a queda da arrecadação dos impostos não seria a queda da
produção, mas, sim, o contrabando feito pelos mineradores. Então, em 1788, Martinho de Melo e Castro envia para a
Capitania das Minas um novo governador, o Visconde de Barbacena, Luís António
Furtado de Castro do Rio de Mendonça e Faro, que, além de substituir Cunha
Meneses, deveria proceder com a cobrança da Derrama: cujo valor estimado era de
538 arrobas de ouro (cerca de 7.900 Kg).
Portanto, as
condições econômicas das Vilas e Arraiais da Capitania de Minas viam-se
marcadas duplamente pela questão aurífera: em primeiro lugar, muitas das vilas
tinham surgido em decorrência do processo de mineração. Esse foi o caso, por
exemplo, da Vila de São José del Rei, cujo ouro de aluvião encontrado em seu
território foi responsável pelo rápido desenvolvimento de seu Termo, tendo a
Vila possuído um considerável território, no qual eram encontrados vários
arraiais. Posteriormente, o exaurimento das minas de ouro foi fator principal das
constantes mudanças nas cobranças dos impostos pela Coroa. Assim sendo, a
imposição da cobrança da Derrama era vislumbrada pelos mineradores e outros
moradores da capitania como muito provável. Por isso, um grupo específico
dentro da Capitania passou a discutir um outro destino para Minas que não fosse
aquele, o de produtor da riqueza que alavancava Portugal enquanto matinha os
produtores em endividamento e sob constante medo: fosse medo das cobranças,
fosse medo pelas das ações diretas dos governadores enviados para a colônia,
como seria o caso de D. Luís da Cunha Meneses.
De tal modo,
junto do ouro (mas longe das casas de fundição) “fundiram-se” tanto o
desenvolvimento da Capitania como, também, algumas das ideias revolucionárias. Como
exemplo destas ideias, ainda em decorrência do crescimento econômico, foi
possível que alguns produtores enviassem seus filhos para Portugal, Inglaterra
e França, onde puderam estudar e compreender melhor o lugar possível das Minas
em relação à Metrópole. Esse foi um dos pontos que se encontravam discutidos
pelos inconfidentes: a Capitania das Minas seria autossustentável, produzia
muito mais riquezas do que consumia. Além disso, tais estudantes, quando
retornavam para a colônia, vinham não apenas com seus estudos, mas, também, tinham
entre suas malas livros “perigosos” que influenciariam os rumos da planejada
revolta.
De tal modo,
o constante temor da cobrança da Derrama, a compreensão das possibilidades da
Capitania (devido à capacitação dos estudos), além de questões filosóficas e
políticas que remetiam a autores como Montesquieu (O Espírito das Leis e Cartas Persas),
formavam o contexto para que, na década de 1780, fosse discutida a liberdade da
Capitania de Minas (entre outras) em relação à coroa Portuguesa.
No grupo
daqueles homens posteriormente caracterizados como Inconfidentes, a certeza da
cobrança da Derrama vinha acompanhada também da certeza de que a Derrama traria
amplo descontentamento nas Minas, produzindo, então, parte das condições
necessárias para proceder com o rompimento com Portugal. Obviamente, não se
tratava naquele momento em falar de um Brasil livre. A situação era tratada
principalmente em termos de Minas e Rio de Janeiro, considerando ainda a
possibilidade de que outras capitanias, como a de São Paulo e Goiás, viessem a
fazer parte da nova nação. Sob esse aspecto, mais do que a influência de
intelectuais franceses, os inconfidentes se inspiravam no exemplo do processo
de Independência Americana ocorrida em 1776, quando o grupo formado pelas treze
colônias americanas rompeu com a Inglaterra.
Conforme
salientado, com a cobrança da derrama, apenas uma parte das condições estaria
posta no tabuleiro político dos revoltosos. Por um lado e contra ela, os
inconfidentes acreditavam que seria possível um levante que imporia uma ruptura
definitiva com os portugueses. Contudo, tal situação apenas resolveria parte do
problema, a parte externa, a relação de “dependência” ou “domínio” entre a
metrópole e a colônia. De outro modo, seria necessário pensar nas consequências
de tal ruptura: a formação de uma nova nação, o que significava instalar um
novo governo (com leis independentes da metrópole), organizar a defesa do país
ante uma reação de Portugal, bem como outros procedimentos. Depois, ainda
restaria implementar os planos que fariam alavancar a nova nação, como a instalação
de universidades, etc.
Nesse sentido,
as Treze Colônias Americanas possibilitavam bem mais que o simples exemplo de
ruptura. Até aquele momento, a noção de República estava um tanto restrita
àquelas pequenas extensões geográficas sob certa forma de governo. Nesse
período, ainda não se encontravam estados unificados, como posteriormente ocorreu
com a Itália. Países com maiores extensões, como a França, seguiam
monarquistas. Outros lugares, como Genebra ou ainda “cidades” da península
itálica, quando não caíam sob governos estrangeiros, eram confiados à forma
republicana. De tal modo, quando as treze colônias americanas fizeram a
independência, rompendo com a forma monárquica, instituíram a república e deram
ao mundo uma mostra do republicanismo que poderia ser adotado em um país de
grande extensão geográfica.
Até aquele
momento, ficavam demarcadas as posições de vários filósofos políticos na
observação da organização política dos estados. Montesquieu, por exemplo,
discutia a possibilidade das repúblicas sob duas circunstâncias: no caso de uma
república pequena, ela estaria constantemente sob a ameaça de forças
estrangeiras. Não teria poderia suficiente para se defender. No caso de uma
república de grande extensão, esta acabaria se corrompendo pelos vícios
internos, pela impossibilidade de uma ampla participação política ou, ainda,
por não notar na expansão os problemas mesmos problemas que levaram Roma deixar
de ser uma república e depois decair em sua forma de império. Restaria, por
fim, a possibilidade de uma federação.
O caso dos
Inconfidentes se assemelhava mais ao americano do que ao caso francês. O grupo
dos inconfidentes, pode-se dizer, seria um tanto heterogêneo em seus interesses
e formações: padres, militares, advogados, funcionários públicos e financistas.
Grosso modo, seriam divididos em pelo menos três grupos: financistas; ideólogos
da possível revolução; e ativistas. Neles, seria possível separar figuras que
queriam resolver suas questões financeiras, desejavam pagar menos impostos à
coroa ou obter maior liberdade para tratar de seus negócios (uma vez que, para
a coroa, era desejado que permanecessem com suas atenções apenas à mineração).
Entre o segundo grupo estariam aqueles que, dando maior profusão aos seus
estudos, observavam bem o que significava optar por uma determinada forma de
governo, elaborar e promulgar uma constituição, pensar a defesa da nação, etc. E
por fim, estariam aqueles que se empenharam em promover a revolta, ainda que
não fossem movidos por interesses/ganhos pessoais ou por um profundo
conhecimento jurídico ou filosófico.
Contudo, não
importando em qual grupo estivessem os inconfidentes, a causa republicana ainda
era incerta (incerta em todo o mundo). Mesmo entre os grandes pensadores
políticos, a monarquia ainda era a forma de governo “mais adequada” quando se
pensava em países com certa extensão territorial. Em favor dela (monarquia), o
exemplo inglês de uma monarquia constitucional talvez pudesse ser citado como
forma mais eficaz e menos ameaçadora à liberdade do povo. Contra os argumentos
da monarquia, no contexto mineiro, significaria iniciar uma nova dinastia na colônia
ou, de outro modo, trazer da metrópole parte dos membros da família real, o que
significaria manter ainda alguma relação com Portugal. Nesse ponto, as
discussões entre os inconfidentes possivelmente tiveram que girar em torno da forma
de governo, entre uma ala monarquista e alguns outros que pendiam para a causa
republicana. E foram estes últimos, possivelmente encabeçados pelo gênio de Tomás
Antônio Gonzaga, que se sobrepuseram aos demais.
A opção pela forma republicana, como referido
anteriormente, foi influenciada sobremaneira pelos desdobramentos da
Independência americana. O grupo formado pelas treze colônias, uma vez
procurando obter o apoio à nova nação e mostrar sua firmeza, havia preparado
uma publicação em língua francesa na qual faziam saber de algumas constituições
das colônias americanas, além de documentos que acreditavam ser importantes
para imprimir a ideia de unidade nacional. Assim foi publicado “na” França o
Recueil des loix constitutives des
États-Unis de l’Amérique (Coletânea das leis constitutivas dos Estados
Unidos da América, publicado em 2013 com o título O livro de Tiradentes, sendo nele incluídos três estudos sobre sua recepção na Capitania de Minas),
livro que logo chegou também à Capitania de Minas, sendo trazidos para cá por
dois ex-alunos da Universidade de Coimbra, um por José Álvares Maciel e o outro
por José Pereira Ribeiro.
Dentre os exemplares que vieram
para a Capitania de Minas, um deles acabou em posse do Tiradentes que, embora
não soubesse ler em francês, o trazia a tiracolo, aproveitando as oportunidades
nas quais poderiam lhe traduzir algumas das passagens do livro. Uma vez
traduzida parte de seu conteúdo, Tiradentes exprimiu sua preferência e
admiração pela constituição da Pensilvânia, cuja acuidade de análise pode
demonstrar a presença dos ideais republicanos. Cito alguns dos artigos iniciais
da referida constituição:
I
– Todos os homens nasceram igualmente livres e independentes; e têm direitos
certos, naturais, essenciais e inalienáveis (...);
III
– O povo do Estado é o único a ter direito essencial e exclusivo de governar-se e de regular sua
administração interna.
IV
– Residindo toda autoridade originariamente no povo e sendo, por conseguinte,
emanada dele, segue-se que todos os oficiais do governo revestidos da
autoridade, sela legislativa, seja executiva, são seus mandatários, seus
servidores e lhes devem prestar contas em todos os tempos.
V
– O governo é ou deve ser instituído para a vantagem comum, para a proteção e
segurança do povo, da Nação ou da Comunidade, e não para proveito do interesse
particular de um único homem, de uma família ou de um conjunto de homens que
não são mais que uma parte dessa comunidade (...).
Retornando à
heterogeneidade do grupo dos inconfidentes, sobre a primazia de nomes como Cônego
Luís Vieira da Silva, de Cláudio
Manoel da Costa ou de Tomás Antônio Gonzaga, a república teria suas chances de
prosperar, sobretudo pelas informações que foram repassadas quanto ao feitio
das leis por parte daquele grupo, leis essas que teriam sido expostas para
alguns, tendo, inclusive, chamado a atenção do Tiradentes. Sobre a primazia do
grupo financista, dos devedores da coroa, daqueles que queriam liberdade de
produção ou apenas menos impostos, seria possível avaliar um choque e
resistência para com a causa republicana, especialmente por essa dar atenção ao
bem comum em lugar do interesse particular. Notadamente, nada diferente do que
pode ser observado ainda nos dias de hoje, quando os ideais republicanos são
deixados de lado em prol do enriquecimento de grupos que se sobressaem ao bem
estar comum. Sob a primazia dos ativistas, em especial da figura do Tiradentes,
o ideal da república pôde seguir “vivo”. Não obstante, um século depois de seu
enforcamento no antigo Largo da Lampadosa no Rio de Janeiro, Tiradentes já havia
sido alçado ao panteão dos heróis nacionais, sendo utilizado como exemplo de desprendimento
e virtude política (algo comum quando observados os pensadores republicanos). O
erro, porém, continua ser utilizá-lo sem qualquer vinculação com o ideal de
nação que emergia da proposta republicana, com vistas àquilo que é o interesse
de todos da comunidade. E, pelo contrário, associá-lo a grupo/classes com seus
interesses próprios.
Seja como
for, as propostas do grupo dos inconfidentes, os motivos que estavam presentes
em seu projeto de revolta, retornam constantemente à cena política, fazendo-se
necessário pensar outras propostas de país. Mais que isso, eles introduziram,
ao final do século XVIII, na colônia, ideais políticos: discussões sobre o
pertencimento em uma nação livre com sua soberania, questões de igualdade, a
liberdade e, a partir dela, a participação política.
_________________________
¹ A versão final deste artigo encontra-se publicada no e-book "Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes: reflexões sobre História".
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