Em Tiradentes, assim como em toda cidadezinha interiorana, a infância da maioria das pessoas que viveram a era pré internet era povoada de histórias, mitos e lendas. Recentemente, o Instituto Histórico e Geográfico publicou uma coletânea de lendas reunidas em 1978 e que tem feito muito sucesso principalmente entre a criançada da era digital. Interessam-lhes os “causos” contados por nossos avós e que se referem a uma cidade que não existe mais, a um tempo em que a crendice e a ingenuidade permitia o diálogo do real com o fantástico. Sonhar era permitido.
Não há muito tempo (entenda-se década de oitenta para trás) era comum uma roda de conversa à noite, na porta da casa, em que os mais velhos contavam histórias para uma plateia de meninos invariavelmente curiosos e amedrontados. Eram histórias dos tempos em que a cidade ainda era uma ruína colonial, sem energia elétrica e sem movimento. Meia noite era, citando Edgar Allan Poe, “a hora que apavora” e todos se recolhiam cedo; dormiam com as galinhas para acordar com elas. Caída a penumbra da noite eram os seres fantásticos que perambulavam pelas ruas, além de um ou outro aventureiro desavisado. Conviviam pacificamente, a lenda e a realidade. Daí surgiram inúmeros “causos apavorantes”, alguns deles registrados na coletânea do IHGT.
Um história do conhecimento dos antigos e que está quase caindo no esquecimento é a do caboclo d'água da viturina. Segundo a versão que conheço, tratava-se de uma figura extravagante, meio humana meio bicho, tal como um homem das cavernas, que vivia nas margens do Rio das Mortes, no local conhecido por viturina. Era visto por pescadores e banhistas que frequentavam o local. As vezes estava sentado em cima de uma pedra, no meio do rio, outras vezes caminhava displicentemente pela várzea, na região da lagoa do cacheu. Parecia não se importar muito com a presença das pessoas, e não há registros de que tenha atacado alguém. Deixava-se contemplar e depois mergulhava nas águas do rio...
Nesses novos tempos, meia noite já não apavora tanto e a criançada já não brinca mais nas ruas e nem visita a viturina, antigo local de banho. Pescadores também estão escassos, já que o peixe é facilmente comprado no mercado e o Caboclo d'água, certamente sentindo-se abandonado, num dos mergulhos no Rio das Mortes, desapareceu para sempre.
Outra hipótese é a de que o caboclo foi vítima da tecnologia. A cidade, em uma nova era das “vacas gordas”, está sentada diante da televisão ou do computador e os velhos já não têm mais meninos curiosos e amedrontados para ouvir-lhes as histórias. Os garotos estão em alguma lan-house, certamente.
Brincadeiras a parte, o que revolta mesmo é a destruição do habitat do caboclo d´'água. O crescimento desordenado da cidade em função de uma economia em ascensão espalhou o bicho-homem por todos os lados, expulsando os seres fantásticos. O local da lagoa do cacheu, em que nasceu o poeta Basílio da Gama, e em que “vivia” o nosso caboclo d'água, por exemplo, sofreu a ação de tratores que devastaram a região, inclusive entupindo a lagoa. O projeto é a construção de um loteamento. Quem sabe não arranjam um lote para o Caboclo d'água?
Rogério Paiva, Sócio e arquivista do IHGT.
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