Falar em biblioteca, atualmente, pode soar meio obsoleto, afinal, estamos em plena era digital em que um simples clique em um site de buscas na internet nos oferece de forma rápida e insegura tudo o que queremos saber sobre tudo. Com isso aquele prédio cheio de livros parece ser coisa do passado. Prova disso é o descaso que as autoridades de maneira geral costumam dedicar às bibliotecas públicas. Salvo poucas e honrosas exceções, as bibliotecas públicas não são acondicionadas em locais adequados e, muitas vezes, como é o caso de nossa cidade, não possuem nem mesmo um lugar (in)adequado, precisando mudar de endereço de tempos em tempos, com sérios prejuízos para o seu acervo.
Pensar que as bibliotecas não são mais necessárias em função do amplo acesso oferecido pelas mídias eletrônicas é um erro cujo preço certamente será cobrado no futuro, se é que já não estamos pagando por ele atualmente. Pensar que as bibliotecas públicas não são mais importantes e que podem ser colocadas em qualquer canto é outro equívoco lamentável. Não adianta nada defendermos a chamada inclusão digital se os nossos jovens estão se tornando analfabetos funcionais. Grande parte deles não se dá mais ao trabalho de pegar um livro para estudar ou mesmo como leitura de entretenimento. Parece que estamos vivendo a ditadura da informática. As consequências da desvalorização do livro e das bibliotecas podem ser vistas, por exemplo, nas redações dos vestibulares, nas provas de escola ou até mesmo no bate papo informal das redes sociais, nos quais aflora toda a incompetência para ler, escrever e raciocinar dos nossos jovens. Isso, dentre outros fatores, é resultado da perda do hábito da leitura e da desvalorização do livro e do uso das bibliotecas como fontes do conhecimento e como local em que se exercita a leitura, a escrita e o raciocínio. Os avanços da eletrônica não podem significar a perda da racionalidade.
O uso da razão é o que diferencia o ser humano das demais espécies, e pode ser traduzida pela capacidade de produzir conhecimento. Através do conhecimento cumulativo chamado cultura, o homem obtém o poder de transformar a si mesmo e ao mundo em que vive. O conhecimento produzido, invariavelmente é registrado em documentos e livros, para que possa ser preservado, difundido e aproveitado pelas novas gerações. Não haveria evolução se cada geração precisasse começar tudo de novo, inventar tudo de novo. Isso nos leva a uma outra característica própria do homo sapiens que é hábito de armazenar conhecimento. Se a capacidade humana de produzir conhecimento inventou a cultura, o hábito de armazená-lo, certamente, possibilitou o desenvolvimento da civilização.
O conhecimento produzido e acumulado ao longo do tempo, bem como os registros das crenças e das produções artísticas da humanidade, desde a mais remota antiguidade se reúne em bibliotecas. Podemos então dizer que ao inventar o saber o homem precisou também inventar a biblioteca. Usando de liberdade poética, podemos imaginar que a primeira biblioteca tenha surgido há mais de quarenta mil anos, quando o homem começou a desenhar cenas do seu dia a dia nas paredes de sua caverna. Graças a esses desenhos, podemos saber hoje um pouco dos seus hábitos e crenças. Começou ali a tradição de registrar fatos, para compartilhar conhecimentos, com o claro objetivo de educar as novas gerações. De lá para cá evoluíram a técnica e os materiais disponíveis para a escrita, mas a necessidade de registrar, armazenar e repassar o conhecimento permanece a mesma. Das tabuletas de argila usadas na Mesopotâmia, passando pelo pergaminho e pelo papiro, até chegar ao papel, no segundo século da nossa era, à invenção da imprensa no século XV d.C. e aos atuais recursos eletrônicos, a história da humanidade passa pelas prateleiras de uma grande biblioteca chamada cultura universal.
Na antiguidade, as bibliotecas eram instaladas em lugares reservados apenas aos sábios, reis ou sacerdotes. O conhecimento que guardavam era ao mesmo tempo um tesouro a ser preservado da sanha destruidora das guerras e uma ameaça aos privilégios das elites. A primeira biblioteca organizada de que se tem notícia foi criada em Nínive no século VIII a.C. A mais famosa de todas foi, sem dúvida foi a biblioteca de Alexandria, criada por Ptolomeu no século III a.C., que possuía milhares de volumes de manuscritos e que foi criminosamente incendiada por três vezes, com perdas irreparáveis para a humanidade. É antigo, portanto o hábito de esconder e de destruir livros e bibliotecas.
Esse hábito de destruir ainda permanece em nosso tempo, principalmente durante regimes de exceção como o nazismo, quando não apenas os livros, mas os escritores foram perseguidos. Já o hábito de esconder ou restringir o acesso às bibliotecas começou a mudar por volta do século VI a.C., quando surgiu em Atenas, na Grécia, a primeira biblioteca aberta ao público. Os romanos, no século II de nossa era, inauguraram a primeira biblioteca efetivamente pública. Durante a Idade Média as bibliotecas foram novamente afastadas do público e encerradas em castelos e mosteiros como símbolos de poder e privilégio de poucos até que na Renascença, quando foi criada a tipografia, ressurgiram as bibliotecas públicas patrocinadas por mecenas. A Revolução Francesa trouxe juntamente com os ideais de liberdade fraternidade e igualdade, o projeto de educação laica e gratuita com a abertura das bibliotecas ao grande público. Desde então as bibliotecas públicas têm sido alvo de maior ou menor cuidado por parte dos governos, ressaltando-se como exemplo positivo a biblioteca do Congresso americano, em Washington, nos Estados Unidos, atualmente com mais 100 milhões de documentos entre livros, manuscritos e outras mídias.
Atualmente, em uma nova concepção, as bibliotecas podem abrigar além das costumeiras revistas, jornais, fotografias, manuscritos, gravuras e desenhos, também CDs, DVDs e bancos de dados eletrônicos. A biblioteca virtual não precisa excluir a biblioteca física, e ambas podem conviver harmoniosamente em um mesmo ambiente, e ambas precisam ser igualmente incentivadas e protegidas. Uma biblioteca, mais do que um espaço físico ou virtual é também um ambiente metafísico em que o conhecimento se transmite. Uma estante de livros ou um computador, uma mesa e uma cadeira. Um indivíduo a ler o que outros indivíduos escreveram. Séculos de cultura acumulada e à disposição, ao alcance da mão e da mente do leitor. Transcendente é o ato de escolher um autor ou tema, apanhar o livro na estante ou acessá-lo eletronicamente e a partir de então mergulhar nas infinitas possibilidades cognitivas, reais ou imaginárias. É a possibilidade de frequentar o pensamento dos grandes gênios da humanidade e poder conversar com eles com simples o gesto de folhear um livro. É o ato de apropriação do conhecimento libertador. Fundem-se no instante introspectivo da leitura todo o passado presente e futuro da humanidade. É esse o sentido de cultura que o termo biblioteca encerra.
Esperamos que esta breve reflexão sobre a história da biblioteca possa servir para que pensemos com mais carinho em nossa biblioteca pública, fundada por Herculano Veloso em 1898, nomeada Thomás Antônio Gonzaga em 1955, e que já está mais do que na hora de ter casa própria.
Rogério Paiva
Sessão solene de 19/01/2013
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