David I. Nascimento
sócio do IHGT
“O taubateano João de Siqueira Affonso, depois da
descoberta do Sumidouro, que foi o terceiro arraial das Minas, caminhou doze
léguas para o Sul e descobriu as minas do Guarapiranga, hoje cidade de Piranga.
Não satisfeito com esses descobrimentos, João Affonso, que pretendia, como
rezam as crônicas, rivalizar-se com o coronel Salvador Fernandes, veio ter a
Ponta do Morro e fez as descobertas das minas de São José...”
Assim começa o texto de Herculano Veloso sobre as
“Ligeiras Memórias da Vila de São José”. Obviamente, Herculano Veloso não é um
senhor que, por motivos desconhecidos, teria presenciado, ele próprio, a
descoberta do ouro em 1702. Nem tão pouco festejou a elevação do Arraial Velho
do Rio das Mortes à categoria de Vila, em 19 de janeiro de 1718, a partir do
ato de D. Pedro Miguel de Almeida Portugal e Vasconcelos, o então Conde de
Assumar. Ainda hoje, é possível que muitos desconheçam a história e os
personagens que deram origem ao povoamento do “lado de cá” ou do “lado de lá” do
Rio das Mortes e ao estabelecimento da região. Conde de Assumar e Alorna? Tomé
Portes d’El-Rey? João de Siqueira Affonso? Quem?... Contudo, basta abrir um ou
outro livro, cuidadosamente composto por palavras e datas, para se ater com a
dívida que todos nós possuímos com Herculano Veloso e outros tantos
pesquisadores dedicados aos arquivos empoeirados e abandonados. Arquivos esses
que, acreditem ou não, já foram tratados como se fossem tijolos, jogados de
mãos e mãos... e transportados como se fossem papéis velhos a caminho de um
aterro sanitário. As janelas deste casarão já o testemunharam.
Expostas essas considerações, cabe dizer que Herculano
Veloso faleceu poucos dias após completar 79 anos, em 4 de setembro de 1941. É
preciso reafirmar sua condição de ser efêmero para que seja possível responder
uma questão: de que modo Herculano
Veloso pôde escrever seu livro sobre a criação da Vila de São José, hoje cidade
de Tiradentes? A resposta é simples: a partir da pesquisa que os documentos,
que os arquivos, permitem. Os arquivos falam silenciosamente. É preciso
dedicar-lhes atenção. Observá-los. Tentar descrevê-los. Algumas vezes,
identificar autores, decifrar letras, ligar os pontos de um e outro arquivo.
Essa é a tarefa que muitos pesquisadores tomam para si. Assim é que o
pesquisador se tornou seu amigo e confidente. Mas não muito confidente, e nem o
poderia ser, pois pagaríamos com o preço do esquecimento.
Voltando ao povoamento da região do Rio das Mortes... Por
um lado, a recém criada Vila de São José divisava seu território com a Vila de
São João del Rei. Por outro, na década de 1750, o território da Vila de São
José chegava a divisar com a Capitania de Goiás, “estendendo-se o seu
território até o rio Paraíba” (VELOSO, 2013, p. 70), indo até onde hoje é
encontrada a cidade de Bambuí. Pela descoberta do ouro que fez com que a Vila
de São José prosperasse, ela cresceu em número de habitantes e comércios. Da
mesma forma, a crescente povoação em localidades fora da sede e a diminuição do
ouro levaram ao declínio do seu território. Assim, a Villa de São José perdeu
vários de seus arraiais e, aos poucos, também seu poder político e econômico.
Conforme comenta Olinto Rodrigues, “no extremo da
decadência, o município de São José foi suprimido pela Lei Provincial n° 360,
de 30 de setembro de 1848, sendo restaurado um ano depois pela Lei 452, de 20
de outubro de 1849”. Dito de outro modo, durante um ano São José del Rei perdeu
seu status e voltou a ser de responsabilidade de São João del Rei, a quem
pertencia antes de se tornar vila. Com a decadência e “emigração” das famílias
abastadas (que foram investir nas plantações de café), a Vila de São José
manteve parte de suas construções antigas, o traçado de suas ruas e um modo
singular de existência. Por certo tempo, somavam-se a isso os problemas de
transporte, a inexistência de água encanada e luz elétrica.
De tempos em tempos, alguma brisa soprava e se
enveredava entre as paredes imponentes da Serra São José e corria junto às
margens do Rio das Mortes. A brisa seguia ou ia contra as águas, levava para um
lado ou para o outro, fazia algo se transformar e a Vila ganhava novo fôlego...
assim foi que, em 7 de outubro de 1860, a Vila de São José del Rei tornou-se cidade. Mas os ventos das grandes transformações tinham seu próprio tempo.
Levou mais algum tempo até que os transportes pelo Rio
das Mortes ou pelos trilhos da Estrada de Ferro Oeste de Minas viessem a se
concretizar. Levou mais quase meio século para que, com a campanha republicada
e o uso da figura de Joaquim José da Silva Xavier, o mártir da Inconfidência, a
cidade passasse a se chamar Tiradentes, em 6 de dezembro de 1889, logo após a
Proclamação da República. Foi preciso ainda mais algumas décadas para que “o
conjunto ‘arquitetônico e urbanístico’ da cidade de Tiradentes” fosse tombado
em 20 de abril de 1938; foi ainda preciso mais outras tantas décadas para que a
cidade fosse descoberta pelo turismo, que trouxe consigo um novo aquecimento de
sua economia e, também, a conhecida especulação imobiliária da cidade. Então
veio o “esvaziamento” (humano) de seu centro e a perda de parte de sua
identidade. Com dificuldade, a conservação da cidade passou a enfrentar o crescimento
desordenado e transformação mobiliária.
(como lembrou o sócio Rogério Paiva em uma de suas
crônicas mais irônicas e, ao mesmo tempo, tristes, nem mesmo o pobre Cabloco D’Água foi poupado... ele já não faz mais seus passeios pela Viturina: “o
Caboclo d'água, certamente sentindo-se abandonado, num dos mergulhos no Rio das
Mortes, desapareceu para sempre...”).
Portanto, o que se comemora nesse 19 de janeiro é bem
mais que o aniversário de 302 anos de uma cidade, mas também a vida e a morte de
tantos ilustres e desconhecidos que fizeram e continuam fazendo parte dela... ainda
que suas memórias só sobrevivam nos costumeiros causos. Um Francisquinho do Bar
aqui; uma Tunica ali; um Valente (e seu caminhão velho) acolá; uma Sá Cota
Veloso por algum lugar... e, claro, o Vicente Veloso (Bolas Pelotas), em cada
pedacinho das ruas pelas quais correu atrás daqueles que não falavam sua
língua.
Aliás, em outro 19 de janeiro (desta vez, do ano de
1977), comemora-se outro “nascimento”. Nessa data, com o decreto municipal
n°200, assinado por Josafá Pereira, foi fundado o Instituto Histórico e
Geográfico de Tiradentes. Entre seus membros à época, deve ser destacada a
figura ímpar do sócio Eros Miguel da Conceição, cuja capacidade, cuidado e
inventividade atestam a falta que ele nos faz, constantemente. Desde sua
criação, foram feitas inúmeras exposições, concursos, palestras e sessões
solenes. Foram inúmeros os sócios que vieram e que se foram. Pessoalmente, se
me fosse pedido para resumir o IHGT eu não o poderia fazer sem citar o artigo
2° de seu Estatuto: “promover estudos e investigações relativas à história,
geografia, etnografia, arqueologia e ecologia...”; “divulgar e defender o
acervo histórico e paisagístico da região...”; “promover cursos, conferências,
seminários, mesas redondas-, oficinas, exposições e trabalhos de campo sobre os
assuntos de seu interesse”; “manter publicação para divulgar trabalhos e
documentos históricos referentes ao município de Tiradentes e à região do Rio
das Mortes, e que representem o fruto de estudos e pesquisas do IHGT”;... para
citar alguns de seus itens. Para dizer “a verdade”, o estatuto do IHGT traz
consigo nobres iniciativas que nos últimos tempos têm sido perseguidas pelas
posições obscurantistas. Sobretudo, o incentivo à pesquisa e a promoção da
cultura e educação deviam ser constantes, não apenas em nossa instituição. Mas,
infelizmente, mesmo com os cortes de gastos sofridos pelas universidades, mesmo
com as críticas erigidas às artes e cultura, muito pouco tem sido dito pelas
autoridades que deveriam ter a obrigação de fazê-lo. Não adianta nos reunirmos
em comemoração ao aniversário da cidade e do IHGT se não nos solidarizamos com
tantos estudantes, pesquisadores, professores e funcionários de instituições
como a UFSJ, por exemplo. Torna-se uma comemoração vazia, visto ser justamente
por meio das defesas e incentivos a cultura, arte, educação e pesquisa que a
cidade e o IHGT podem afirmar suas histórias e identidades.
Ainda sobre o IHGT, graças à cooperação com outras
entidades (como reza seu estatuto), ele pôde ofertar à cidade de Tiradentes um
dos mais importantes presentes nos últimos dez anos: o Plano Diretor. Este, se
bem observado, pode levar a cidade à tantas outras comemorações... tratando, seu
povo com justiça e cuidado. Possibilitando o crescimento que não descaracterize
a cidade e não agrida seus bens históricos e ambientais. Com isso, é preciso
reconhecer que o Plano Diretor não pode se tornar um arquivo empoeirado,
esquecido e ouvido por poucos. Fazê-lo gritar e ser ouvido é uma das formas de
homenagear e parabenizar os aniversariantes do dia, IHGT e Tiradentes.
Dedicado aos sócios Lucy Fontes Hargreaves, Olinto R. dos Santos Filho e Rogério Paiva.
SANTOS FILHO, Olinto Rodrigues dos. Guia da Cidade de
Tiradentes: História e Arte. 3ª ed. Belo Horizonte: Paulinelli, 2012.
SANTOS FILHO, Olinto Rodrigues dos. A Matriz de Santo
Antônio em Tiradentes. Brasília, DF: IPHAN/Monumenta, 2010.
SANTOS FILHO, Olinto Rodrigues dos. Tiradentes:
Monumentos preservados. Tiradentes: IHGT, 2015.
VELOSO, Herculano. Ligeiras Memórias da Vila de São
José nos tempos coloniais. 3ª ed. Tiradentes: Editora IHGT, impresso na
Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 2013.
Nenhum comentário:
Postar um comentário