Olinto Rodrigues dos Santos Filho
Nos próximos dias 12 e 13 de março será realizada a tradicional Festa de
Nosso Senhor dos Passos em Tiradentes. Oficialmente , a solenidade tem 295
anos, pois contamos a data de fundação da Irmandade do Bom Jesus dos Passos, em
2 de outubro de 1721, pelo cabido da Sé – Catedral do Rio de Janeiro, que
estava em sede vacante, ou seja, não tinha bispo na sede da diocese. Mas é
certo que a imagem já exista antes dessa data, e possivelmente a procissão.
Fazem a petição para a criação da irmandade o rico minerador João
de Oliveira e outros. Foi João de Oliveira quem achou por volta de 1730 uma grande “mancha” de ouro
no lugar conhecido como Cuiabá, nas barrancas do Rio das Mortes. No documento
que ele manda a cúria do Rio de Janeiro diz que quer “erigir e criar uma
Irmandade do Sr. Dos Passos pela muita devoção que tem a imagem deste Senhor
por haverem mandado buscar, e por ficar mais conveniente quanto a este seu
intento, há uma capela de Nossa Senhora do Bom Despacho naquele distrito e nela
querem erigir e criar a dita Irmandade do Nosso Senhor dos Passos...”. Foi
portanto a irmandade criada na Capela de Nossa Senhora do Bom Despacho do
Córrego, certamente erigida nos primeiros anos do Século XVIII, num plateau
sobre a serra de São José. Hoje pode-se identificar o local onde há um poste de
alta tensão, no final do calçamento de paralelepípedos na estrada velha entre
Tiradentes e São João del Rei.
A Capela do Bom Despacho não teve muita sorte e caiu em decadência muito
cedo, pois o ouro rareou no Arraial do Córrego e a população foi sumindo. Já em
1830, todo o acervo de imagens, prataria, paramentos foi recolhido pela
Irmandade do Santíssimo Sacramento à Matriz da Vila de São José. Parte do
acervo, como imagens e sino, foi emprestado a Capela da Santíssima Trindade e
devolvido a Irmandade do Santíssimo por volta de 1852. Do acervo ainda se pode
identificar um turíbulo com inscrição de 1746 e uma custódia de prata dourada,
hoje no Museu da Liturgia. A imagem da padroeira sobreviveu no nicho da
Sacristia da Matriz de Santo Antônio até os anos de 1960, de onde desapareceu
entre 1966 e 1969. Não se sabe se foi furtada, emprestada, vendida ou doada por
padres inescrupulosos e simoníacos.
Detalhe da imagem de N. Sra. do Bom Despacho, Fotografia de Edgard de Cerqueira Falcão, do livro "Relíquias da Terra do Ouro". |
Voltando ao Senhor dos Passos, a Irmandade fez seu Compromisso (estatuto)
com XVI capítulos neste ano de 1721, tendo sido aprovado em 25 de novembro de
1721, pelo cabido em mesa capitular, pois não havia ainda bispo residente. Em
1731, cinco capítulos foram reformados e aprovados pelo bispo D. Frei Antônio
de Guadalupe, bispo do Rio de Janeiro, em 18 de setembro.
Em 30 de janeiro de 1778, o compromisso foi aprovado pelo Rei D. José I
através da mesa de Consciência e Ordens. Novamente o compromisso é reformado em
três capítulos e aprovado pela rainha D. Maria I, em 10 de julho de 1791. O mesmo
compromisso foi visto em correição pelo juiz de direito da comarca em 1858,
1859, 1865 e 1868.
O fato é que com a decadência do Arraial do Córrego ou por motivos não
esclarecidos, a imagem do Bom Jesus dos Passos se transfere para a Matriz de
Santo Antônio entre 1727 e 1728, quando se cogita em construir um altar de
talha para a entronização da imagem. Somente em 1737 a irmandade contrata a
construção de um retábulo com Pedro Monteiro de Souza por seiscentas oitavas de
ouro. O motivo alegado para se buscar a imagem do Senhor dos Passos na Capela
do Córrego foi se fazer uma solene procissão, em março, para pedir as bênçãos
do Senhor no sentido de aplacar a grande seca que assolou a região. Parece que
a imagem veio em procissão do Córrego até a matriz e percorreu as ruas da vila.
Imagem do N. S. dos Passos de SJDR, Fotografia: Jacó, 2011. |
N. S. dos Passos de SJDR. Foto de Francisco José dos S. Braga |
O Compromisso da Irmandade reza que a agremiação tinha a obrigação
estatutária de promover três festas por ano: a primeira no dia 3 de maio, em
comemoração da Invenção da Santa Cruz, o que quer dizer que se comemora o dia em que Santa Helena ,
mãe do imperador romano Constantino, identificou a Cruz em que Jesus Cristo
teria sido crucificado. Nesta solenidade, deveria o Santíssimo Sacramento estar
exposto o dia todo e a tarde sair em procissão com “todos os irmãos com suas
vestias roxas”. A segunda solenidade deveria ser no dia 14 de setembro, quando
se comemora a Exaltação da Santa Cruz, ocasião na qual se “dirá uma missa
cantada na capela e altar do Senhor” como se tem costumado fazer, assistindo os
mesários com suas vestes roxas e os outros irmãos sem ela. Ainda no dia 14, se
“cantarão solenemente as vésperas do ofício dos defuntos” e no dia seguinte,
15, se cantará o ofício “duplex com toda a solenidade, e com missa cantada, e
sermão”. A terceira comemoração seria a
Festa do Senhor dos Passos, com procissão na sexta-feira da segunda semana da
quaresma e também deveria ser cantada uma missa solene, com o Santo Lenho exposto
no lugar da imagem, pois esta estaria no andor para a procissão. A procissão
seria tarde, com todos os irmãos “quando a irmandade por instituto próprio
renova a memória dos (Passos) que o Senhor deu pelas ruas de Jerusalém em
benefício da redenção de todo o gênero humano”. A imagem só poderá sair em
procissão fora desta data por decisão da mesa “em tempo de pública e extrema
necessidade espiritual ou temporal”.
O curioso é que, certamente, a partir de 1727, quando a Imagem vem para a
Matriz, a Festa e a procissão do Senhor dos Passos se faz sempre no Domingo de
São Lázaro, que antecede ao Domingo de Ramos e assim se mantém até hoje, com
exceção dos anos que houve Semana Santa completa, no século XX, após a extinção
da Irmandade.
Originalmente, a festa era organizada com missa solene cantada pela manhã
e com sermão (não havendo missa após o meio dia); a tarde, por volta das 15 ou
16 horas, a procissão do Senhor dos Passos saía da Igreja Matriz pela Rua do
Sol (hoje Rua Padre Toledo), onde haviam dois (2) Passos, passando pelos Três
Cantos, seguindo pela Rua Direita, onde há dois (2) Passos, atingindo os Quatro
Cantos, descendo a Rua do Chafariz até o Largo do Ó, onde há um Passo e subindo
pela Rua Jogo de Bola (ou de trás) até o Largo do Pelourinho, onde há outro
Passo, subindo pela Rua da Câmara, até atingir a Igreja Matriz de Santo
Antônio, onde era o último Passo.
Nessa época, não havia ainda o encontro com a Virgem Dolorosa. Os passos
originalmente eram montados nas ruas e porta da igreja, com telas pintadas, e
só em 1745 se começou a construção das capelas.
Com incremento do culto a Nossa Senhora das Dores pelos padres oratorianos
em fins do século XVIII, especialmente de Braga, foram surgindo as Irmandades e
imagens da Virgem Dolorosa e se instituiu o Encontro do Senhor dos Passos com
Nossa Senhora das Dores, fato não relatado nos evangelhos. Aqui, na Vila de São
José, a introdução do Encontro vem após a criação da Confraria de Nossa Senhora
das Dores, em 1801, e o término das obras da Igreja de Nossa Senhora das
Mercês. Em 1807, decidiu a irmandade fazer o Depósito da Imagem do Senhor dos
Passos para a Capela da Irmandade de Nossa Senhora das Mercês, no sábado,
retomando a Procissão do Senhor no domingo para o Encontro com a Virgem
Dolorosa, que saía de sua sede, a Igreja de São João Evangelista, encontrando
em frente à Cadeia. Portanto, o Depósito e o encontro completarão este ano, 2016,
209 anos.
Livro de Estatuto da confraria de N. Sra. das Dores, 1801. Desenho de Manoel Victor de Jesus |
Com a mudança do trajeto da procissão, os dois Passos da Rua do Sol
perderam a função, tendo a Irmandade decidido demoli-los e guardar os painéis
no consistório. Diz o acórdão que um dos Passos era impróprio por ser do Senhor
Morto. Na mesma reunião, decidiu-se construir um Passo novo no largo da Rua das
Forras para completar os sete (7), pois o primeiro era montado na entrada da
Igreja de Nossa Senhora das Mercês e o último na entrada da Igreja Matriz de
Santo Antônio, com os painéis que ficaram guardados, hoje não mais existentes.
De um dos Passos da Rua do Sol sobreviveu apenas o cômodo, sem o retábulo
e o forro. Recentemente, retornou o uso para a Via Sacra, após limpeza,
pintura, colocação de forro, restauração de telhado, rebocos e porta feitos
pelo vizinho, cuja casa envolve o antigo Passo. Esse Passo abandonado já serviu
como abrigo a uma senhora indigente e como depósito de materiais e ferramentas
da prefeitura no tempo em que Heitor Silva
era fiscal municipal. Parece que o seu retábulo foi reutilizado para o nicho de
Nossa Senhora das Dores processional, colocado no Consistório da Confraria na
Igreja de São João Evangelista, hoje em processo de restauração. A peça é em
tudo semelhante aos dos Passos mais antigos (Rosário, Largo do Ó e Largo do
Pelourinho). Poderá ser atribuída a lavra de João Ferreira Sampaio, pois os outros
são de sua autoria.
A Festa de Passos desde 1807 permanece da mesma forma, saindo o Senhor
dos Passos em depósito para a Igreja das Mercês no sábado, envolto em Velário
roxo. Na Rua das Forras (atual Resende Costa) é feito o encontro com a
Irmandade de Nossa Senhora das Mercês, que o cobre com seu pálio e toma o andor
para conduzi-lo até sua capela. Neste momento, o Santo Lenho é incensado sobre
o andor. Chegando à Igreja de Nossa Senhora das Mercês o Velário é descerrado
ao som de um moteto, geralmente “Popule Meus”. Recentemente, recuperou-se o
Sermão do Pretório, logo após a entrada do Depósito, tradição que ficou perdida
por mais 80 anos.
No domingo, às dez horas, é celebrada a Missa Solene, que tem assistência
da Orquestra e Coro Ramalho desde meados do século XIX. A missa é precedida de
Rasoura, uma pequena procissão em volta da igreja, quando a imagem do Senhor
dos Passos é conduzida pelos irmãos das Mercês, tradição que data do século
XIX.
As seis horas da tarde, sai a procissão do Senhor dos Passos, parando nas
capelas, onde são entoados os Motetos de Passos, com sopro e vozes. Os motetos
originais eram de autoria de Manoel Dias de Oliveira (1735-1813) e foram
substituídos pelos atuais, datados do fim do século XIX, de autoria de Antônio
Pádua Falcão (1843-1927). Ao mesmo tempo, sai da Igreja de São João Evangelista
a procissão de Nossa Senhora das Dores, que vai encontrar a imagem do Senhor
dos Passos no Largo do Rosário, onde é recitado o Sermão do Encontro.
Originalmente, o andor da Virgem era conduzido pelos confrades de Nossa Senhora
das Dores, com opas roxas e azuis, e hoje é conduzido pelos irmãos de São João
Evangelista, com opas verde-vermelhas. Acompanha a Virgem os figurados São João
Evangelista e Santa Maria Madalena. Figurados são pessoas com vestes a caráter
representado os santos. A Madalena veste túnica e manto e leva um diadema na
cabeça. Deve ter cabelos longos, para lembrar a mulher que enxugou os pés de
Jesus com os cabelos. Trás nas mãos uma naveta com incenso, em alusão ao óleo
perfumado com que ungiu os pés de Cristo. João veste a túnica e manto verde e
vermelho, suas cores iconográficas, e trás seus atributos, livro dos evangelhos
e pena para escrever.
Após o Sermão do Encontro, o coro entoa o “Miserere” de Manoel Dias de Oliveira
e a procissão prossegue parando nos outros dois Passos, agora com o andor de
Nossa Senhora junto, até recolher-se a Igreja Matriz de Santo Antônio, onde é
cantado o último moteto e é recitado o Sermão do Calvário, com a cena da
gólgota montada na tribuna do altar mor da igreja. Termina a solenidade com o
tradicional beijo às imagens por todos os fieis.
Em alguns anos, após a extinção da Irmandade do Bom Jesus dos Passos, a
Festa de Passos foi incorporada a Semana Santa, sendo realizada na segunda e terça-feira.
Isso aconteceu por insistência dos párocos pelo menos nos anos de 1920, 1945,
1948, 1952 e 1968. Nos demais anos, desde 1727, sempre foi feita no Domingo de
São Lázaro.
A Solenidade dos Passos reveste-se de grande apelo aos sentidos, sendo
muito cara aos cidadãos tiradentinos. A Banda de Música Ramalho, durante o
trajeto, executa marchas fúnebres de autores locais de fins do século XIX e
início do XX, quando as bandas foram introduzidas nas procissões.
Originalmente, as procissões não eram acompanhadas de bandas porquê essas só
foram criadas no século XIX, as procissões eram abertas por trombeteiros e,
durante o trajeto, o coro entoava motetos. Entre os compositores estão
Francisco de Paula Vilela, Benjamim e João Andrade Gomes, José Lino de Oliveira
França, entre outros. A Orquestra e Coro Ramalho executa peças dos séculos
XVIII e XIX, nas missas de sábado e domingo, e os motetos da procissão, já
referidos. Na missa de domingo, costuma-se executar trechos do Ofício de Trevas,
de autoria do Pe. José Maria Xavier (1819-1887). Os camarins dos retábulos,
assim como os crucifixos das banquetas, ficam velados com panos roxos. As
cruzes processionais também são cobertas por panos roxos, como os frontais de
altar. Os pisos das igrejas são cobertos por rosmaninho, planta cheirosa,
nativa da região. Os andores são enfeitados com muito manjericão e alecrim,
para criar o perfume típico das procissões da Paixão. A cruz do Senhor dos
Passos é enfeitada com uma grande “palma” de orquídea típica da região, a “Cattleya
loddigesii”, em tons violeta. As imagens vestem túnicas roxas com rendas e
bordados em fios de ouro, assim como as sanefas do andor de Passos. Completa
essa encenação de cunho barroco o dobre fúnebre dos sinos das igrejas Matriz de
Santo Antônio, Nossa Senhora das Mercês, São João Evangelista e Nossa Senhora
do Rosário, além das nuvens de incenso que sobem dos turíbulos e das luzes das
velas, ciriais e lanternas que iluminam as procissões. A Festa de Nosso Senhor
dos Passos é, sem dúvida, a mais bela e comovente solenidade do Ciclo da Paixão
em Tiradentes, que certamente já passa dos 300 anos.
Nesse ano de 2016 pregará os sermões o reverendíssimo Arcebispo
metropolitano de Juiz de Fora, D. Gil Antônio Moreira, titular da província
eclesiástica da qual é sufragânea a diocese de São João del Rei, a qual
pertence a paróquia de Tiradentes.
A FESTA DOS PASSOS E A INCONFIDÊNCIA MINEIRA
A Irmandade do Bom Jesus dos Passos
congregou no séc. XVIII os homens de destaque na sociedade, como os militares,
os ricos mineradores e os sacerdotes mais ilustrados. À Irmandade pertenceu o
avô de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, Domingo Xavier Fernandes,
assim como o pai do alferes, Domingos da Silva dos Santos. Também se alistaram
como irmãos o vigário inconfidente Castro Correa de Toledo e Melo (1731-1804),
o capitão José de Resende Costa, também envolvido no frustrado levante. Todas
essas pessoas contribuíram com suas esmolas para a realização da Festa do Senhor
dos Passos e vestiram a opa roxa para acompanhar a procissão.
Forro da Sala de Jantar do Vigário da Vila de São José, entre 1777-1789, Padre Corrêa de Toledo |
Mas um fato liga definitivamente a
procissão de Passos à Conjuração Mineira. Três foram os principais denunciantes
ou delatores da conjuração: Joaquim Silvério dos Reis Montenegro, conhecido na
época como Joaquim Saltério; Basílio de Brito Malheiros do Lago e o mestre de
campo Inácio Corrêa Pamplona. Na carta denúncia de Pamplona, datada de 20 de
abril de 1789, escrita na sua Fazenda do Mendanha, próxima a capela de Santo
Antônio da Lagoa Dourada, pertencente ao território da antiga Vila de São José,
ele conta “que no dia 29 de março, fui convidado pelo reverendo vigário, Carlos
Corrêa de Toledo, para a Semana Santa a dita vila; e fui a procissão dos
Passos, onde o dito vigário me disse em conversa que se tratava de um levante,
havendo leis, o general deposto, estando falado o Regimento, parte dele; no
Rio, um alferes fazendo séquito... E como era dia de sermão e de noite fomos
visitar as igrejas, não deu tempo para mais...” Portanto, o Padre Toledo
aliciou um dos delatores durante a procissão de Passos. Em outra parte dos
Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, uma testemunha disse que Pamplona
chegou a andar sobre o pálio, cochichando com o Padre Toledo. No depoimento de
Pamplona, em 30 de junho de 1789, ele repete mais ou menos a mesma coisa, só
acrescentando que o “Alferes Joaquim José, por alcunha Tiradentes, se achava no
Rio de Janeiro a fazer séquito...”
A procissão de Nosso Senhor dos Passos de
29 de março de 1789 ficou definitivamente ligada a história da Inconfidência
Mineira.
Fotografias: David I. Nascimento
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