18.3.24

Tiradentes, Modernistas e Semana Santa

 

Texto de Olinto Rodrigues dos Santos Filho



Blaise Cendrars

Em 1924, há exatos 100 anos, o poeta franco-suíço Blaise Cendrars (1887-1961), pseudônimo de Frédéric Louis Sauser, visitou o Brasil a convite de um grupo de intelectuais paulistas promotores do modernismo na literatura e nas artes no país.

O convite partiu de Paulo Prado (1869-1943) que era casado com a francesa Marie Lebrun, ou Marinette da Silva Prado (?-1983) após o casamento. Paulo Prado, junto com D. Oliveira Guedes Penteado, foi uma espécie de mecenas da Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922, evento que mudou os rumos das artes plásticas e literatura no Brasil da época.

Blaise Cendrars era uma espécie de guru dos poetas modernistas, tido como inspirador do grupo paulista do qual faziam parte Mário de Andrade (1893-1945), Oswald de Andrade (1890-1954), Menotti Del Picchia (1892-1988).

Pois bem, após recepcionado no Rio de Janeiro pelos intelectuais no próprio navio onde estavam Graça Aranha (1861-1931), Ronald de Carvalho (1893-1935), Américo Jacó Prudente de Morais (neto) (1885-1953), Guilherme de Almeida (1890-1960) e o caçula, no dizer de Cendrars, Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982).

Depois das aventuras pelo Rio de Janeiro, o poeta seguiu para São Paulo, onde foi recebido pelo grupo de lá, e do qual se incluíam Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Sérgio Milliet (1898-1966), Tácito de Almeida (1889-1940), Couto de Barros (1896-1966), Rubens Borba de Moraes (1899-1986), Luiz Aranha (1901-1987), Antônio Alcântara Machado (1901-1935), além, é claro, da pintora Tarsila do Amaral (1886-1973) e D. Oliveira Guedes Penteado (1872-1934).

Blaise Cendrars havia perdido um braço durante a Primeira Guerra (1914-1918) e teve problemas com a polícia na hora de desembarcar no porto de Santos, pois “o Brasil não precisava de mutilados”.


Blaise Cendrars



Parte do seleto grupo de intelectuais resolveu fazer uma viagem à Minas Gerais durante a Semana Santa para ver a cidades antigas, a arquitetura colonial e a arte barroca, isso por influência do Mário de Andrade, que já tinha vindo à Minas em 1919, onde se avistou em Mariana com o poeta simbolista Alphonsus de Guimarães (1870-1921).


Hotel Macedo onde se hospedaram os modernistas.


Acompanhando o poeta Modernista franco-suíço, vinham na caravana a mecenas D. Oliveira Guedes Penteado, Tarsila do Amaral, René Thiollier (1882-1968), Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Oswald de Andrade Filho (Nenê) (1914-1972) e Godofredo Silva Telles (1888-1980) fizeram uma longa viagem de trem até Divinópolis e, depois, seguiram para São João del-Rei, onde se hospedaram no Hotel Macedo, e se registraram por brincadeira com profissões e origens estapafúrdias.


Foto da viagem modernista em São João Del Rei, 1924.



Caderneta de viagem de
Mário de Andrade,1924.


Já no dia 19 de abril estariam em Tiradentes, pois anotaram seus nomes em uma caderneta de Mario de Andrade em número de sete (7), datado e com o nome antigo da cidade, “São José d’El Rey”. Certamente, na Sexta-feira da Paixão, no dia 18 de abril, à noite, eles já estavam em Tiradentes, pois, Blaise Cendrars, no conto “O Lobisomem de Minas”, incluído no livro “Elogio da vida perigosa” (Éloge de la vie dangereuse, 1926), escreveu “a procissão da noite de Páscoa parava sob as janelas da prisão. Algumas centenas de negros na praça. Todos de camisolas e com velas na mão. As mulheres velhas e criancinhas usava máscaras. Um grupo de jovens vaqueiros puxavam um burro sobre o qual estava armado um boneco cheio de pólvora, de fogos de artifício, de foguetes, de petardos. Era a efígie de Judas Iscariotes que levavam para fora da cidadezinha para queimá-la e fazê-la explodir. De pé sobre um estrado forrado de pelúcia, uma jovem corcunda cantava o lamento de Verônica. A sua voz pura, cristalina, aflautada e comovida, se juntava a voz grave de uma mulher alta, macilenta, anêmica, grávida. Um portuguesinho barrigudo e um gigantesco e evangelista negro faziam o contraponto às duas mulheres. Depois de cada estrofe, a corcunda exibia à multidão o pano branco que traz a marca do lastimoso rosto de Nosso Senhor e os negros caiam de joelho e se perdiam em orações”. Aqui se vê claramente que o escritor fez uma simbiose do cortejo do Judas pela cidade, no Sábado de Aleluia, tradição esta que ainda participamos até os anos 1990, e a Procissão do Enterro, que parava na frente do Rosário e Cadeia para o canto da Verônica, que exibe um lenço com a face de Cristo em sangue. As outras vozes são das Marias “Heu”, que cantavam após a Veronica. O nosso escritor ainda conclui escrevendo que “quando a procissão voltou a andar e os círios balouçantes desenhavam um leque de cruzinhas móveis com as grades da janela sobre o teto da cela...”, referindo-se a Cadeia onde ele estava conversando com um preso.


Cadeia de Tiradentes onde Cendrars
encontrou o preso que lhe inspirou
o conto O Lobisomem de Minas



Inscrição em francês na fachada da Cadeia. Será de Cendrars?


É na cadeia que Blaise Cendrars encontrou um ou dois pesos que mataram um homem e comeram o seu coração, o que motivou o conto acima citado. O preso ainda ofereceu a ele um punhal, o qual dizia ser a arma do crime. O autor diz que o episódio tinha transcorrido na estação da estrada de ferro, mas parece ter sido uma história mais rude. O conto foi datado de 15 de março de 1926, portanto dois anos depois. Também Carlos Augusto Calil, em artigo publicado na Folha de São Paulo, trata do caso sobre o referido prisioneiro quando da visita dos modernistas à Tiradentes: “A procissão do Senhor Morto, na noite da Sexta-feira da Paixão em Tiradentes, é o ponto alto da viagem. Mário, Oswald e Blaise ficam marcados pelo espetáculo religioso. No sábado de Aleluia, ainda em Tiradentes, quando o grupo passava pela cadeia local, um prisioneiro que estava atrás da janela gradeada chama a atenção dos passantes, pedindo intercessão junto às autoridades para aliviar a sua pena. Cendrars pergunta-lhe que crime o havia condenado e ele confidencia que, com seu punhal, havia matado o rival, arrancado seu coração e comido. Em estado de exaltação, o poeta francês exclama "Quelle merveille" [Que maravilha!], expressão que repetia com frequência, para irritação de Mário de Andrade”.


Cadeia de Tiradentes no filme de
Carlos Augusto Calil
"A aventura Brasileira de Blaise Cendrars"




Mário de Andrade, no verso da folha de sua caderneta de viagem, onde assinaram em 19 de abril, rascunhou uns versos que nunca publicou:

“Endexas do preso

Havia um preso em S. d’El Rey

Há dois anos, um mês e um dia

Que estou preso em S. José d’El Rey

Si comi o coração dum homem

Si bebi o seu sangue quente

Que tem os outros com isso?”

 

Autoretrato de Tarsila do Amaral


Já no final da vida, em 1971, Dona Tarsila do Amaral vai relembrar o episódio do preso na cadeia de Tiradentes entrevista-depoimento feito em outubro, no seu apartamento da Rua Albuquerque Lins, em São Paulo. Depois de lembrar que a viagem foi de trem, recorda: “em Tiradentes, passamos lá pela cadeia. Dois homens presos, mas assim na altura da janela mesmo, ficaram conversando conosco. Então Cendrars perguntou: ‘por que estão presos esses homens aqui?’ Um outro soldado que estava assim ali do lado contou: ‘eles mataram um homem... depois comeram... arrancaram o coração e comeram’. Imagina que coisa horrível! Cendrars então falou: ‘Quelle Merveille’. Que tudo para ele era ‘Quelle Merveille’! Ele achou estupendo isso, foi justamente o que ele pensou ele dizia ‘Quelle Merveille’”. Tarsila iria falecer logo em 1973, sendo sua última lembrança da viagem. Ela ainda diz que ele “achou uma beleza também é Verônica que levantava e mostrava a santa face”. Não fica claro se a Verônica foi vista em São João del-Rei ou em Tiradentes, mas, a julgar-se pelo conto do Lobisomem de Minas e pelos desenhos de Tarsila, cremos ter sido em Tiradentes, onde o poeta se encantou também pelo Canto chão. 

Desenho a lápis de Tarsila do Amaral feito em 1924 em Tiradentes
 que foi do acervo de Yves Alves. Aqui se vê a rua Direita,
o Púlpito do Rosário, um lavabo e outros estudos.


Rua Direita com sobrado de José Ribeiro ao fundo, hoje desaparecido.


Tarsila registrou em uma folha de papel a lápis alguns “figurados” da Semana Santa, como o Centurião, como nós ainda conhecemos, São João Evangelista, os escadinhas e carregadores do esquife, além de tocheiros e as lanternas de Nossa Senhora das Dores. Ainda aparecem em outra folha um desenho da Rua Direita e o púlpito do Rosário. O desenho é assinado e pertenceu a Yves Alves, que já nos emprestou a obra para uma exposição, hoje já não sabemos o seu paradeiro. No mesmo dia, certamente, Tarsila desenhou o conjunto urbano com a Matriz ao alto, onde se identifica a cadeia, o fórum e a Igreja da Trindade. Embaixo, desenhou duas crianças e um perfil de homem. Assinou T. 24. Vê-se que é um estudo para um quadro, pois ela escreveu em certa parte a palavra “rosa”.


Carregador do esquife
do Senhor Morto
no desenho de
Tarsila do Amaral.



Centurião


Escadinha



S. João Evangelista



Figurados da Semana Santa em Tiradentes desenhados
por Tarsila do Amaral,1924.



Tiradentes por Tarsila do Amaral, 1924.



Não sabemos a quem pertence esse desenho muito conhecido em Tiradentes. Portanto, se Tarsila desenhou cenários da procissão do enterro, é porque eles estavam em Tiradentes nesse 18 de abril de 1924, pelo menos à noite, e voltaram no sábado, pois viram o cortejo do Judas pela cidade.

Outra curiosidade é ter Mário de Andrade comprado um quadro a óleo representando São João Evangelista e o vendedor o ter feito acreditar que tinha pertencido ao padre Toledo, e anotado no verso com uma letra do fim do século XIX e início do XX: “Rdo Padre Toledo/ S. Je d’El Rey 2-9-1805”. Ele se referiu a compra de um quadro em Tiradentes em crônica de Malazarte e ainda diz que Tarsila comprou uma imagem de Sant’Ana.


Quadro comprado por Mário de Andrade
em Tiradentes em 1924, IEB/ECA /USP.



Depois de hospedado em São João del-Rei, o grupo excursionou por Ouro Preto, Mariana, Sabará e Congonhas, sempre de trem, e vão a capital do estado, onde se encontram com grupo Modernista e reforça a amizade já firmada entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade.


Grupo dos modernistas em uma igreja
de Minas não identificada,1924


Essa caravana deixou em Mário de Andrade uma profunda impressão, e este passou a valorizar as obras do passado brasileiro, que depois vai desaguar na criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), hoje IPHAN, instituição em que tive a honra de trabalhar 35 anos e lá me aposentar. Mário foi encarregado de elaborar o ante projeto do SPHAN, e foi seu representante em São Paulo, posteriormente escreveu sobre o Aleijadinho.

Texto sobre a exposição que montei
no centenário de Mário de Andrade,1994.



Mas, voltando à Tiradentes, ainda em 1928, Mário escreveu a Manuel Bandeira: “acho imprescindível vocês irem também a São José del Rei que fica pertinho de São João del Rei. A Matriz de lá é magnífica por dentro e das mais luxuosas. O quadro que esconde o altar-mor, retábulo móvel, é uma obra-prima do primitivismo”. Mário se refere ao painel do “Milagre da burra”, que fechava a boca do camarim até 1972, quando foi retirado. O escritor o viu com muitas repinturas, e por isso o seu primitivismo hoje não identificado na pintura agora colocada na parede da nave, diante do órgão.

Anos depois, Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-1969), escolhido para presidir o SPHAN por quase toda sua vida (1936-1968), conta, em carta a Mario de Andrade, datada de 4 de novembro de 1937, que veio visitar São João Del Rey e Tiradentes junto com sua esposa, dona Graciema Melo Franco de Andrade, e Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990), também com sua esposa.


Visita de Rodrigo Melo Franco de Andrade ao arcebispo de
Mariana D. Helvécio Gomes de Oliveira



Na correspondência registrou que “conheci a espantosa Matriz de Tiradentes, que eu não conhecia ainda, revi a Igreja de São Francisco de sua predileção,assim como o Carmo e a esquisita Matriz de São João”.

 

Bibliografia

ANDRADE, Mário de; ANDRADE, Rodrigo M. F. Correspondência Anotada. Notas de Clara Andrade Alvim e Lélia Coelho Frota. Organização de Maria de Andrade. São Paulo: Todavia, 2023.

BATISTA, Marta Rossetti. Religião e magia, música e dança, cotidiano. In: Coleção Mário de Andrade. São Paulo: Edusp; Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo, 2004.

CALIL. Carlos Augusto, Blaise. Há 100 anos modernista Blaise Cendrars chegava ao Brasil. Folha de S. Paulo, São Paulo, 05 fev. 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2024/02/acaba-de-chegar-ao-brasil-o-belo-poeta-frances-blaise-cendrars.shtml

CENDRARS, Blaise. Etc…, Etc… um Livro 100% Brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1976.

COELHO FROTA, Lélia. Tiradentes: Retrato de Uma Cidade. São Paulo: Editora Bem-Te-Vi, 2005.

EULÁLIO, Alexandre. A aventura brasileira de Blaise Cendrars: ensaio, cronologia, filme, depoimentos, antologia. São Paulo, Quíron; Brasília, INL, 1978.

SANTOS FILHO, Olinto Rodrigues dos. Viagem Modernista. Folheto da Exposição da Secretaria de Turismo de Tiradentes. 15 de janeiro a 20 de fevereiro de 1994. Centenário de Mário de Andrade. Promoção do Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes.

23.1.24

Dois poetas visitam São José del-Rei


 Rogério Paiva – Sócio do IHGT


A Vila de São José del-Rei, ou São José do Rio das Mortes, como era mais conhecida, completa neste momento 306 anos. Originária do Arraial de Santo Antônio, formado em 1702 pelo bandeirante João de Siqueira Afonso, a Vila foi criada a 19 de janeiro de 1718, sob o governo do Capitão-general D. Pedro de Almeida Portugal, Conde de Assumar. O nome da Vila homenageava o príncipe português, futuro Rei D. José I. 


São José foi a segunda vila a ser criada na extensa Comarca do Rio das Mortes, e a sétima na Capitania de Minas Gerais. Em plena euforia econômica, motivada pela descoberta das jazidas de ouro e diamantes, as vilas se multiplicavam e se faziam necessárias para melhor administração da grande massa de garimpeiros que afluíam à Capitania em uma verdadeira corrida do ouro. Antes mesmo da criação da Vila, o episódio, que passou à História como a Guerra dos Emboabas, cobriu de cadáveres as cercanias do Rio das Mortes, reforçando seu nome sinistro. Para pacificar os ânimos exaltados pela disputa era preciso criar vilas, para a organização da exploração mineral e para que o Estado e a Justiça de El Rei pudesse assumir o controle da situação.


Herdeira do sucesso econômico do Arraial de Santo Antônio, a Vila de São José já nasceu grande,   com território que alcançava as cabeceiras do Rio São Francisco. Na vasta Comarca do Rio das Mortes, São José dividia território e rivalizava em riqueza e poder com sua irmã mais velha, a Vila de São João, criada em 1713. A Vila se manteve próspera durante a maior parte do século XVIII, porém, a partir do último quarto daquele século, a atividade mineradora começou a dar sinais de exaustão. Explorava-se, então, o ouro de aluvião, que já não era mais tão farto nas ravinas e no leito do rio. A decadência da mineração, somada ao desmembramento de seu território para a criação de novas vilas, como a de Tamanduá (Itapecerica) em 1789, e Igreja Nova (Barbacena) em 1791, foi aos poucos minando o poder político e econômico da Vila. O século XIX foi de extrema dificuldade econômica, com a perda de mais territórios, o que, no entanto, não impediu que a Vila fosse elevada à categoria de cidade  a 7 outubro de 1860, mantendo a mesma denominação. Em 1889, já no regime republicano, o nome da cidade foi alterado para Tiradentes em homenagem a Joaquim José da Silva Xavier, o filho herói,  que sacrificou a vida pela causa da liberdade em 21 de abril de 1792.


Como testemunha dos tempos de boa fortuna da Vila, ficaram seus monumentos, como a Matriz de Santo Antônio, joia do Barroco Mineiro, um dos templos mais belos do Brasil, e o Chafariz de São José, cujo projeto arquitetônico não encontra similar em parte alguma. 


Hoje em dia é comum dizer-se que, graças à decadência econômica, a cidade se preservou. Esta afirmação nos parece apenas uma meia verdade. De fato, o empobrecimento da cidade impediu sua modernização, deixando-a propícia à restauração, que se iniciou a partir da visita dos modernistas paulistas em 1924 e o tombamento de todo o conjunto arquitetônico pelo IPHAN em 1938. No entanto, observando fotografias e documentos antigos, constatamos que foram tantas as perdas em seu conjunto arquitetônico, foram tantos  os casarões que ruíram ou foram simplesmente demolidos, que podemos afirmar que hoje em dia temos apenas uma ideia do que foi a outrora  pujante Vila de São José.


A cidade, revitalizada graças ao sucesso da empresa do turismo, novamente, experimenta a euforia econômica e quase se esquece de seu passado difícil. Vive-se muitas vezes como se não houvesse amanhã, ou como se a cidade fosse, nas palavras de Yves Alves, uma galinha dos ovos de ouro. Pensamos que, para a valorização do presente e perspectiva de um futuro ainda melhor, precisamos conhecer nosso passado, estudar a nossa trajetória, compreendermos os sucessos e os fracassos desses mais de trezentos anos de história. História que se conta de muitas formas, através dos arquivos históricos e dos livros. História que pode vir de fonte oficial ou indiretamente, por meio de depoimentos de pessoas que nos antecederam por aqui. Desta feita, para uma rápida visita ao nosso passado, com o intuito de valorizarmos o nosso presente e planejarmos o nosso futuro de forma sustentável, destaquemos dois viajantes sensíveis, cujos olhos um dia contemplaram nossa cidade e cujas mentes refletiram sobre seu estado: Olavo Bilac e Carlos de Laet. Antes, porém, cabe uma rápida contextualização histórica dessa visita ilustre.


Corria o ano de 1893, sob a presidência do Marechal Floriano Peixoto, a República recém proclamada enfrentava sérios problemas, como a Revolta da Armada, deflagrada a 6 de setembro. Amotinados, alguns oficiais superiores da Marinha, liderados pelo Almirante Custódio de Melo, pretendiam depor Floriano e convocar eleições para a Presidência. Sem o apoio do Exército, que se manteve leal ao Presidente, os revoltosos passaram a bombardear o Rio de Janeiro e instalou-se a guerra civil que duraria até março de 1894. Durante esse período o país esteve sob estado de sítio, decretado por Floriano em 1892. Era o estado de exceção, em que as garantias constitucionais foram suspensas e o Presidente se revestiu de poderes ditatoriais.


Nesta situação excepcional, tornaram-se frequentes as perseguições políticas, o encarceramento e até a eliminação de desafetos do governo. Lima Barreto, no romance Triste fim de Policarpo Quaresma retrata bem esse contexto de radicalização política e de caça às bruxas que se instalou. Jornalistas e intelectuais considerados militantes eram os primeiros a serem caçados. Era o caso dos poetas, Olavo Bilac e Carlos de Laet que, na companhia de outros intelectuais, se retiraram às pressas do Rio de Janeiro. O destino do grupo foi Minas Gerais, que não era alcançada pelo decreto do estado de sítio e que ficava distante e isolada da convulsão política na capital federal. Nas palavras de Carlos de Laet, Minas era a “terra onde por último se acolheria a liberdade, quando mais guarida não achasse em nosso querido Brasil” (LAET, 1894, p. 3).


Em data não informada, às 5 horas da manhã, o grupo tomou o trem expresso da Central do Brasil e seguiu viagem para as Minas Gerais.  Na estação do Sítio (atual cidade de Antônio Carlos),  fizeram a baldeação para o trenzinho da Estrada de Ferro Oeste de Minas, o destino era São João del-Rei. À medida em que se afastava do Rio de Janeiro e que os temores se dissipavam, a sensibilidade dos poetas aflorava. Olavo Bilac descreve poeticamente o exuberante cenário natural em que sua alma se alargava na contemplação da  serra. O poeta diz que “Deus, em Minas, trabalhou a criação como Miguel Ângelo deve ter trabalhado suas estátuas: a golpes loucos, a camarteladas violentas, talhando monstros cuja visão pesa na retina e esmaga o espírito” (BILAC, 1894, p. 14). Assiste pela janela do trem as águas se precipitarem vales abaixo... no veludo verde das encostas... mas logo se cansa com a beleza repetitiva... e cerra os olhos, mas a paisagem continua a ferir sua retina cansada, e assim continua mesmo quando adormece... (Cf. BILAC, 1894,  p. 16). 


Quanto a Carlos de Laet, não observa nada de interessante na paisagem do trajeto... mas não deixa de descrever a elegância das senhoras na estação de Juiz de fora... e a rotina dos viajantes (Cf. LAET, 1894, p. 10). O poeta observa que o trem passa pela estação de São José às 18:30 e meia hora depois, após uma viagem de 14 horas, o grupo chega a São João del-Rei. Ali permaneceriam alguns meses à espera de que as coisas se acalmassem no Rio de Janeiro. 


Na tranquilidade de São João del-Rei, Carlos de Laet reflete: “Longe, bem longe de nós se amortecera o canhoneio. Até aqui não chegara a febre da luta civil. Se o Rio é a cabeça que arde em cruel pirexia, Minas é o coração não combalido. Nobre coração e que para todos tem um recanto hospitaleiro” (LAET, 1894, p. 13). O tom era de alívio e de gratidão pela terra que o acolhera.


Para o nosso deleite, ambos escreveram seus diários de viagem, que resultaram nos livros Em Minas, de Carlos de Laet, e Crônicas e Novelas, de Olavo Bilac, ambos publicados em 1894. Sobre São João del-Rei Carlos de Laet produz belíssimo texto que informa em detalhes a história, a rotina e os costumes da velha cidade. Em determinado dia ele propõe ao grupo uma excursão a São José, já que as cidades irmãs estavam tão próximas. Seus argumentos são irrefutáveis: “De uma cidade gêmea não se fala sem que ao seu nome imediatamente se associe o de sua irmã. Uma prolonga, desenvolve, explica a outra. Assim acontece com São João del-Rei e Tiradentes, ou São José del-Rei, antiga denominação, que, não sendo oficial, é contudo a mais usada” (LAET, 1894, p. 71-72).


Ao registrar suas impressões sobre a cidade de Tiradentes Olavo Bilac se mostra bastante sucinto e melancólico. A cidade em ruínas e silenciosa o entristece. O poeta destaca o céu de chumbo das duas horas da tarde, os porcos se refestelando na lama em meio ao capim crescido do largo do Chafariz... O poeta caminha meditante pelas ruas da cidade imersa em um silêncio de cemitério (Cf. BILAC, 1894, p. 78). Observa as portas e janelas das casas fechadas... Nenhum sinal de vida humana por ali... Na Matriz, impressiona-se com a suntuosidade do templo e lá encontra o organista (cujo nome infelizmente não registra), que executa uma música ao instrumento centenário (Cf. BILAC, 1894, p. 84). O poeta sente que a melodia soa triste, preenchendo a enorme nave da igreja, e se expande pela cidade vazia, oprime seu espírito e o acompanha mesmo quando já está no trem, a caminho de São João. 


Carlos de Laet, por sua vez, também não foge à percepção da realidade trágica que encontra na velha cidade, mas a descreve com cores mais favoráveis. Em uma perspectiva mais sociológica, o visitante nos fornece informações mais detalhadas da cidade e nela vê mais do que porcos se refestelando na lama... Caminhemos um pouco com ele pela cidade oitocentista. Laet começa por descrever a caminhada que faz da estação até a praça principal:


Do ponto onde nos achamos, avista-se a grande igreja. É a Matriz. Suas torres nos vão guiar na procura do escondido núcleo de população, outrora um dos mais importantes de Minas. Deliciosa frescura ameniza o ambiente. A perfeita solidão em que logo nos sentimos redobra o encanto da agreste paisagem. Ao fundo a Serra mal vestida de vegetação e deixando ver, através dos rasgões do manto verde, a ossatura ciclópica onde há veios de ouro. Sobre a Serra o vasto dossel de azul-turquesa, aqui e ali interrompido por cirros leves e fugitivos quais plumas adejantes (LAET, 1894, p. 72).


O visitante entra na cidade pela grande praça (atualmente denominada Largo das Forras), em que “altas ervas cresciam sem receio dos capineiros”... destaca a igreja do senhor Bom Jesus e o então recém inaugurado monumento a Tiradentes, ao qual descreve e faz severas críticas, por ter sido construído em pedra plástica na terra da pedra verdadeira (Cf. LAET, 1894, p. 73). Procura, na cidade deserta, lugar para tomar café. Observa que as placas dependuradas nas esquinas em que deveria constar os nomes das ruas, escritos a giz, estavam apagadas pelas intempéries (Cf. LAET, 1894, p. 75). Encontra um menino que lhe indica a rua que conduzia ao hotel do Sr. Silvestre, onde se poderia tomar um café. O proprietário não aparece... Os visitantes são atendidos por uma senhora que os deixa esperando indefinidamente na sala de visitas... Desistem do café e vão até a Matriz, que Laet considera “bonita como a Candelária” e cuja riqueza testemunha a antiga prosperidade do lugar (Cf. LAET, 1894, p. 76). No trajeto encontra raros transeuntes... No templo, observa o belíssimo órgão e a prataria que, embora ainda suntuosa,  estava bastante reduzida pela avareza de antigos e indignos guardiões. Os mesmos que também venderam e dispersaram a soberba coleção de móveis que a igreja possuía.


Na Matriz, Carlos de Laet estabelece conversa com um homem negro que varria a igreja. Observa que esse simples homem “de cor”, pela delicadeza do trato, superava a muitos “alvos espécimes” do gênero humano (Cf. LAET, 1894, p. 77-78). Refletindo sobre Antônio Joaquim, Laet nos informa que a Irmandade do Santíssimo Sacramento estava suspensa pelo bispo, por ter se negado a admitir homens de cor entre os irmãos... Antônio Joaquim, a quem o poeta define como “pensador melancólico”, estabelece, então, o que seria sua impressão da cidade, ou seja, pela primeira vez  temos a fala de um tiradentino sobre as condições em que a cidade se encontrava:  


O senhor anda passeando por aí e este lugar não é divertido. A cidade está quase deserta. Cresce capim nas ruas e há muitas casas em que não mora ninguém e, com um suspiro: São José já foi grande e poderosa. Hoje está velha e cansada. É mãe de família que criou muitas filhas: São João, Oliveira e outras... As filhas agora é que estão floreando, e a pobre velha vai vivendo aqui no seu canto (LAET, 1894, p. 79-80).


Carlos de Laet afirma que ninguém poderia ter descrito melhor a “honrosa decadência da velha cidade”. Ao refletir sobre sua cidade, Antônio Joaquim revela senso crítico. Ao contar a história de um defunto enterrado sob uma lápide no adro da igreja, e que trazia apenas a informação “Depósito de J.A.C – 27 de outubro de 1836”, ele demonstra senso de pertencimento. Tratava-se, conforme informou, de Joaquim Antônio dos Campos, um importante sanjosefense que se posicionara contra a emancipação de Oliveira, motivo pelo qual teve a morte comemorada com foguetório naquela localidade (Cf. LAET, 1894, p. 79). O conhecimento de fato tão antigo por Antônio Joaquim surpreende Laet e demonstra o apreço que os sanjosefenses sempre tiveram por sua terra e sua história.


A visita seguinte é à antiga casa do Padre Toledo (que Laet equivocadamente se refere como casa em que viveu Tiradentes). A casa servia de residência ao juiz Edmundo Lins, que enfim lhes ofereceu o suspirado almoço. Em seguida, em companhia do Juiz, o poeta visitou a Casa de Câmara, que guardava o retrato Pedro II ainda criança, a representação da Justiça (deusa Astreia, pintada em 1824 por Manoel Victor de Jesus) e o leito em que D. Pedro I pernoitara em 1831. Visitou a sala de sentenças do fórum e em seguida foi à casa do Padre Caldeira, no Largo do Ó e lá provou o excelente vinho que o padre produzia em seu quintal. 


Carlos de Laet faz, então, algumas considerações sobre a cidade. Diz que a vida ali é baratíssima e destaca a excelência do clima, que torna frequente a longevidade e dispensa a presença de médicos, por não haver enfermidades. Sobre a solidão que tanto impressionara Olavo Bilac, Laet encontra nela vantagens. Diz que ali não há teatros e nem corrida de cavalos, lojas ou botequins e que “Ali, por força, ou se há de dormir todo o dia ou meditar estudando. Ali não se poderia encontrar melhor retiro quem esteja enfadado dos homens e pretenda entrar em um místico solilóquio ou na lição dos livros (LAET, 1894, p. 83). Afirma que “São José, terra do ouro, não tem sido improdutiva no tocante à inteligência e ao saber e cita, como exemplos dois expoentes nacionais, naturais de São José, “que representam  celebridades de primeiro plano. Um nas Letras outro nas Ciências. O poeta José Basílio da Gama, autor de O Uraguai e Frei José Mariano da Conceição Veloso, autor da Flora Fluminensis” (LAET, 1894, p. 84).


O poeta reproduz o ditado local de que “em São José havia três coisas dignas de nota: A Matriz, o Chafariz e o Comendador Carlos Assis”. Como o comendador, grande benemérito da cidade, já havia falecido e a Matriz já havia sido abordada, o poeta destaca a peculiaridade arquitetônica do Chafariz de São José, que considera de estrutura parecida a uma capela. Nele, destacou o lavadouro e coradouro público, “algo que nem no Rio de Janeiro existia” (LAET, 1894, p. 85).  


Por fim, fez considerações sobre a desvalorização dos imóveis na cidade, muitos dos quais ruíram ou foram demolidos para a venda dos materiais a construções de São João del-Rei, prática só interrompida com a publicação de postura municipal proibitiva.


A última visita do poeta em São José foi ao juiz substituto Wladimir da Matta, que morava em um sobrado na praça principal e a quem o poeta considerou um benemérito local e homem de muita erudição, assim como ao juiz Edmundo Lins.


Carlos de Laet se despede da cidade como um profeta de bem aventuranças:

São José, cidade adormecida em um desses letargos que para os povos duram às vezes largos anos, ainda poderá se reerguer e reclamar no convívio da atividade mineira o lugar de honra que lhe compete pela sua ancianidade e pretérita grandeza. Tais, pelo menos, os desejos e votos do último dos viajantes que a contemplou respeitoso (LAET, 1894, p. 86).


Poucos visitantes, em tão pouco tempo, analisaram tão bem a velha cidade. Carlos de Laet não se deixou impressionar apenas pelas ruínas que via. Enxergou e deu voz a um cidadão e buscou entender os motivos de sua decadência e, mais do que isso, enxergou no imenso patrimônio adormecido o futuro de grandeza que hoje testemunhamos.


Termino minhas considerações referindo-me ao outro aniversariante do dia. O Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes foi criado a 19 de janeiro de 1977, com a missão de promover a preservação artística, cultural, patrimonial e ambiental desta cidade e, desde então, tem envidado esforços nesse sentido. Uma das primeiras batalhas do IHGT, que foi o pedido de tombamento federal da Serra de São José, protocolado em 1979 e engavetado, desde então, nos corredores da burocracia oficial, mostrou-se, no ano passado, mais urgente do que nunca. Diante da ameaça de venda em leilão público de parte considerável da área da Serra de São José, com o risco de instalação de mineradoras e outros empreendimentos não condizentes com o propósito de  preservação ambiental, o IHGT somou forças às autoridades locais e à comunidade civil organizada para impedir o erro que seria histórico. Diante da repercussão do caso, o leilão foi cancelado e a referida área foi repassada ao IEF de quem espera proteção enquanto o tombamento federal não se concretize. Outra ação importante do IHGT nos últimos anos foi defesa da adoção de um plano diretor para a cidade, que levasse em conta suas necessidades econômicas, mas também o senso de preservação do nosso patrimônio histórico e natural. O IHGT foi o proponente do Plano Diretor Participativo, patrocinado pelo BNDES, magistralmente elaborado pela Fundação João Pinheiro e entregue às autoridades locais para implantação. A medida será de suma importância para que a velha São José del-Rei sobreviva e não seja sufocada pela ocupação desordenada do seu entorno, devido à especulação imobiliária, com prejuízo para seu patrimônio histórico, cultural e ambiental.


Referências bibliográficas:


BILAC, Olavo. Crônicas e novelas – 1893-1894. Rio de Janeiro: Cunha e Irmão, 1894. Disponível em <https://digital.bbm.usp.br/bitstream/bbm/4474/1/002905_COMPLETO.pdf >. Acesso em 18/01/2024.


LAET, Carlos de. Em Minas – 1. ed. - Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013 (Coleção Biblioteca Básica Brasileira; 20). Disponível em <https://fundar.org.br/wp-content/uploads/2021/06/em-minas.pdf. >. Acesso em   18/01/2024. 


_____________
Comunicação em sessão solene do Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes realizada em 19 de janeiro de 2024.


29.12.23

A Capela do bom Jesus de Matosinhos de Lagoa Dourada


O culto ao Senhor de Matosinhos nasceu em um mosteiro medieval nas proximidades da cidade do Porto, em Portugal, o antigo mosteiro de Bouças. Do mosteiro de Bouças a imagem milagrosa do Bom Jesus, datável do século XIII ou XIV, foi transladada daquela igreja para a Matriz do Senhor de Matosinhos em 1733, quando se realizou grandes festas, tornando-se um santuário marítimo, por estar próximo ao porto atlântico de Matosinhos.




Segundo uma antiga lenda, a milagrosa imagem teria sido esculpida por Nicodemos e, depois de várias peripécias, teria vindo parar na praia de Matosinhos em uma embarcação sem tripulação. A imagem foi recolhida faltando um braço e, algum tempo depois, uma menina, ao fazer uma fogueira, viu que um lenho não queimava, indo verificar, constatou-se tratar do braço da milagrosa imagem e a ela foi integrado. No local do aparecimento da imagem foi erguido um padrão em memória do milagroso fato.






A Matriz do Senhor de Matosinhos tornou-se um santuário de grande importância, como o atesta a sua coleção de ex-votos. Muitos dos portugueses que rumavam para o Brasil pediam a proteção do Senhor de Matosinhos e muitos desses vieram para Minas Gerais, onde o culto e a devoção dessa invocação tiveram grande incentivo. Em Salvador, ao que consta, apenas uma igreja na Bahia foi dedicada ao Senhor de Matosinhos, enquanto Minas conta com várias igrejas e capelas, como as de Congonhas do Campo, Bacalhau (distrito da cidade de Piranga), Ouro Preto, Serro, São João del-Rei, a cidade de Matosinhos, Conceição do Mato Dentro entre outras.








No século XVIII, a igreja do Senhor de Matozinhos passou por grandes reformas seguindo a arquitetura de Nicolau Nazoni e com um belo conjunto de talha barroca, além da construção de capela de Passos no adro daquele santuário. Como trata-se de uma imagem de Cristo medieval, ele é representado com os pés pregados na cruz separados. Veste um perizônio longo, chegando até quase os pés, tendo os braços em ângulo reto e apresenta-se agonizando, com um olho aberto e o outro fechado, olhando para o céu e para a terra.

Em Minas, o mais famoso santuário do Senhor de Matozinhos, é claro, localiza-se no Monte Maranhão, em Congonhas do Campo, à época pertencente à comarca do Rio das Mortes. A Capela do Bom Jesus de Matozinhos, do Arraial da Lagoa Dourada, deve sua instituição ao português Manuel Ribeiro dos Santos, que ergueu uma primitiva capela na margem do caminho entre o arraial e as vilas de São João e São José, por volta de 1750.





Manuel era natural da freguesia de São Tiago da Ribeira das Fraguas do Bispado de Coimbra, tinha 63 anos de idade em 1777 e vivia de mineração. Além da ermida construída de madeira, possivelmente de taipa de mão ou pau-a-pique, Manuel Ribeiro construiu umas casas por volta de 1770 para servir a capela, sendo habitadas por ele próprio como protetor e admirador da capela, servindo para o capelão, para alugarem em favor da capela e casa para os romeiros, que lá iam por ocasião da festa. Essa casa foi doada ao patrimônio da capela em 1776 e isso gerou um curioso documento guardado na cúria de Mariana, no qual o doador foi contestado, tendo que provar a posse do referido imóvel. O documento nos revela que havia uma casa para o Capelão e para os Romeiros, conforme referido acima. Em 1824, em visita do bispo de Mariana, Dom Frei José da Santíssima Trindade, à paróquia de Prados anotou-se a existência de uma segunda capela no arraial da Lagoa Dourada: “Neste Arraial tem outra capela do Senhor Bom Jesus de Matozinhos, fabricada de madeira, mas com decência e com a mesma paramentada para o sacrifício”. Este documento indica que a capela continuava sendo de pau-a-pique como no século anterior. 







Vamos ter nova notícia sobre a capela do Bom Jesus no livro de Capelas e Tombos da Vila de São José del Rei, em data de 1854, quando o tabelião da Vila de S. José registra o inventário de bens da Capela do Bom Jesus, onde constam as imagens do Senhor Jesus Cristo Crucificado grande,  a imagem de Santa Madalena, a imagem da Senhora ao lado da cruz, a imagem de São João Evangelista, a imagem de Nossa Senhora da Conceição, a imagem de São Sebastiao, além de dois castiçais de madeira dourada, seis castiçais grandes de madeira dourada, um crucifixo, um missal, uma estante, uma campainha, um par de galhetas e purificador de prata. Constam ainda no inventário “um caixão grande com seis gavetas”, o que certamente se refere a um arcaz como era chamado à época, indicando que existia uma sacristia onde se localizava tal móvel e sobre ele um oratório com a imagem de Cristo Crucificado.  Contam ainda um cálice de prata com seus pertences que seriam a patena e a colherzinha, assim como um jarro e bacia de lavatório de estanho e alguns paramentos. Como a reconstrução do século XX não contém sacristia, pensamos que o arcaz foi vendido e pode ser o que está hoje na Sala dos arcazes do Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro, devidamente identificado como de Lagoa Dourada. 

No final do século XIX ou início do século XX, a capela parecia estar em ruínas e a decisão foi demoli-la para fazer um novo prédio. Em 1905 foi efetivada a demolição e as imagens foram guardadas na igreja Matriz e só no dia 4 de setembro de 1909 foi benzida a pedra fundamental da nova Capela, embora a obra somente tenha começado em 1911, indo terminar em agosto de 1920, sendo benzida no dia 30 de agosto pelo vigário Antônio Maurício de Medeiros Gouvêa. 


  


Na década de 1940 foi feita nova reforma do prédio, executada uma pintura de forma nas paredes. A nova construção não seguiu o esquema tradicional da arquitetura religiosa setencentista, mas inclinou-se para o ecletismo. Consistiu em nave única, sem separação de capela-mor e sem a sacristia, descrevendo um retângulo, com a fachada principal mais elaborada em frontal curvo, relevos e três janelas onde se inseriu o sino posteriormente. Internamente, apenas um salão, com coro alto acessado por escada em caracol, além da porta principal, duas transversais com detalhe artístico sobre elas. Nos fundos, há um cômodo sob o camarim, hoje funcionando como sacristia. 




O que na verdade destaca a capela na história artística região e de Minas Gerais é o grande e belo retábulo de estilo D. João V em talha policromada, que um dia pode ter sido dourado. É peça de grande qualidade artística, embora tenha sido muito mal tratada por repinturas grosseiras. As imagens de grande porte do calvário talvez sejam o grande legado artístico de Lagoa Dourada, algo incomum na região. 

A restauração artística do retábulo e das imagens, além do arranjo arquitetônico atual, valorizou sobremaneira a peça, colocando-a em destaque. Chego a cogitar que este retábulo tenha pertencido à antiga Matriz, pela excelência de sua talha em comparação com os quatro retábulos da nave colocados na matriz atual. Ganhou a capela não só com a remodelação da área do presbitério, com a criação de um arco, como na retirada de tirantes e a instalação de sacristia transversal, embora exígua. Quando se fez a nova capela, o retábulo ficou estreito para a largura da nave e se fez uma complementação de madeira com pinturas, que agora foi retirada, dando a peça a originalidade ancestral. Que fique para as próximas gerações não só o culto ao Senhor de Matozinhos, mas a sua casa dignamente conservada.