29.12.23

A Capela do bom Jesus de Matosinhos de Lagoa Dourada


O culto ao Senhor de Matosinhos nasceu em um mosteiro medieval nas proximidades da cidade do Porto, em Portugal, o antigo mosteiro de Bouças. Do mosteiro de Bouças a imagem milagrosa do Bom Jesus, datável do século XIII ou XIV, foi transladada daquela igreja para a Matriz do Senhor de Matosinhos em 1733, quando se realizou grandes festas, tornando-se um santuário marítimo, por estar próximo ao porto atlântico de Matosinhos.




Segundo uma antiga lenda, a milagrosa imagem teria sido esculpida por Nicodemos e, depois de várias peripécias, teria vindo parar na praia de Matosinhos em uma embarcação sem tripulação. A imagem foi recolhida faltando um braço e, algum tempo depois, uma menina, ao fazer uma fogueira, viu que um lenho não queimava, indo verificar, constatou-se tratar do braço da milagrosa imagem e a ela foi integrado. No local do aparecimento da imagem foi erguido um padrão em memória do milagroso fato.






A Matriz do Senhor de Matosinhos tornou-se um santuário de grande importância, como o atesta a sua coleção de ex-votos. Muitos dos portugueses que rumavam para o Brasil pediam a proteção do Senhor de Matosinhos e muitos desses vieram para Minas Gerais, onde o culto e a devoção dessa invocação tiveram grande incentivo. Em Salvador, ao que consta, apenas uma igreja na Bahia foi dedicada ao Senhor de Matosinhos, enquanto Minas conta com várias igrejas e capelas, como as de Congonhas do Campo, Bacalhau (distrito da cidade de Piranga), Ouro Preto, Serro, São João del-Rei, a cidade de Matosinhos, Conceição do Mato Dentro entre outras.








No século XVIII, a igreja do Senhor de Matozinhos passou por grandes reformas seguindo a arquitetura de Nicolau Nazoni e com um belo conjunto de talha barroca, além da construção de capela de Passos no adro daquele santuário. Como trata-se de uma imagem de Cristo medieval, ele é representado com os pés pregados na cruz separados. Veste um perizônio longo, chegando até quase os pés, tendo os braços em ângulo reto e apresenta-se agonizando, com um olho aberto e o outro fechado, olhando para o céu e para a terra.

Em Minas, o mais famoso santuário do Senhor de Matozinhos, é claro, localiza-se no Monte Maranhão, em Congonhas do Campo, à época pertencente à comarca do Rio das Mortes. A Capela do Bom Jesus de Matozinhos, do Arraial da Lagoa Dourada, deve sua instituição ao português Manuel Ribeiro dos Santos, que ergueu uma primitiva capela na margem do caminho entre o arraial e as vilas de São João e São José, por volta de 1750.





Manuel era natural da freguesia de São Tiago da Ribeira das Fraguas do Bispado de Coimbra, tinha 63 anos de idade em 1777 e vivia de mineração. Além da ermida construída de madeira, possivelmente de taipa de mão ou pau-a-pique, Manuel Ribeiro construiu umas casas por volta de 1770 para servir a capela, sendo habitadas por ele próprio como protetor e admirador da capela, servindo para o capelão, para alugarem em favor da capela e casa para os romeiros, que lá iam por ocasião da festa. Essa casa foi doada ao patrimônio da capela em 1776 e isso gerou um curioso documento guardado na cúria de Mariana, no qual o doador foi contestado, tendo que provar a posse do referido imóvel. O documento nos revela que havia uma casa para o Capelão e para os Romeiros, conforme referido acima. Em 1824, em visita do bispo de Mariana, Dom Frei José da Santíssima Trindade, à paróquia de Prados anotou-se a existência de uma segunda capela no arraial da Lagoa Dourada: “Neste Arraial tem outra capela do Senhor Bom Jesus de Matozinhos, fabricada de madeira, mas com decência e com a mesma paramentada para o sacrifício”. Este documento indica que a capela continuava sendo de pau-a-pique como no século anterior. 







Vamos ter nova notícia sobre a capela do Bom Jesus no livro de Capelas e Tombos da Vila de São José del Rei, em data de 1854, quando o tabelião da Vila de S. José registra o inventário de bens da Capela do Bom Jesus, onde constam as imagens do Senhor Jesus Cristo Crucificado grande,  a imagem de Santa Madalena, a imagem da Senhora ao lado da cruz, a imagem de São João Evangelista, a imagem de Nossa Senhora da Conceição, a imagem de São Sebastiao, além de dois castiçais de madeira dourada, seis castiçais grandes de madeira dourada, um crucifixo, um missal, uma estante, uma campainha, um par de galhetas e purificador de prata. Constam ainda no inventário “um caixão grande com seis gavetas”, o que certamente se refere a um arcaz como era chamado à época, indicando que existia uma sacristia onde se localizava tal móvel e sobre ele um oratório com a imagem de Cristo Crucificado.  Contam ainda um cálice de prata com seus pertences que seriam a patena e a colherzinha, assim como um jarro e bacia de lavatório de estanho e alguns paramentos. Como a reconstrução do século XX não contém sacristia, pensamos que o arcaz foi vendido e pode ser o que está hoje na Sala dos arcazes do Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro, devidamente identificado como de Lagoa Dourada. 

No final do século XIX ou início do século XX, a capela parecia estar em ruínas e a decisão foi demoli-la para fazer um novo prédio. Em 1905 foi efetivada a demolição e as imagens foram guardadas na igreja Matriz e só no dia 4 de setembro de 1909 foi benzida a pedra fundamental da nova Capela, embora a obra somente tenha começado em 1911, indo terminar em agosto de 1920, sendo benzida no dia 30 de agosto pelo vigário Antônio Maurício de Medeiros Gouvêa. 


  


Na década de 1940 foi feita nova reforma do prédio, executada uma pintura de forma nas paredes. A nova construção não seguiu o esquema tradicional da arquitetura religiosa setencentista, mas inclinou-se para o ecletismo. Consistiu em nave única, sem separação de capela-mor e sem a sacristia, descrevendo um retângulo, com a fachada principal mais elaborada em frontal curvo, relevos e três janelas onde se inseriu o sino posteriormente. Internamente, apenas um salão, com coro alto acessado por escada em caracol, além da porta principal, duas transversais com detalhe artístico sobre elas. Nos fundos, há um cômodo sob o camarim, hoje funcionando como sacristia. 




O que na verdade destaca a capela na história artística região e de Minas Gerais é o grande e belo retábulo de estilo D. João V em talha policromada, que um dia pode ter sido dourado. É peça de grande qualidade artística, embora tenha sido muito mal tratada por repinturas grosseiras. As imagens de grande porte do calvário talvez sejam o grande legado artístico de Lagoa Dourada, algo incomum na região. 

A restauração artística do retábulo e das imagens, além do arranjo arquitetônico atual, valorizou sobremaneira a peça, colocando-a em destaque. Chego a cogitar que este retábulo tenha pertencido à antiga Matriz, pela excelência de sua talha em comparação com os quatro retábulos da nave colocados na matriz atual. Ganhou a capela não só com a remodelação da área do presbitério, com a criação de um arco, como na retirada de tirantes e a instalação de sacristia transversal, embora exígua. Quando se fez a nova capela, o retábulo ficou estreito para a largura da nave e se fez uma complementação de madeira com pinturas, que agora foi retirada, dando a peça a originalidade ancestral. Que fique para as próximas gerações não só o culto ao Senhor de Matozinhos, mas a sua casa dignamente conservada. 



25.5.23

Pela preservação da Serra de São José


Nesta semana recebemos com surpresa a notícia de um Leilão judicial do terreno "Maria Joana", popularmente conhecido como Mangue, que, atualmente, pertence à SAT (Sociedade Amigos de Tiradentes). O leilão foi desencadeado após a SAT ser multada pelo IEF no ano de 2008 em decorrência de um incêndio criminoso que aconteceu no terreno. Caberia ainda ressaltar que a referida instituição havia comprado aquele espaço por motivos de preservação, não sendo responsável pelo incêndio. Por não poder arcar com a multa, duas situações ocorreram: em primeiro lugar, a SAT ficou impossibilitada de realizar convênios e outras ações, como aquelas de cunho preservacionista; em segundo lugar, levou a justiça a determinar que o terreno Maria Joana fosse leiloado.

Após intervenção da Prefeitura Municipal de Tiradentes, o leilão, que aconteceria dia 22 de maio de 2023, foi suspenso por um prazo de 30 dias por determinação do juiz Thiago Guimaraes Emerim.

Como fora informado, alguns lances, dados antes da suspensão do leilão, foram feitos por empresas mineradoras e construtoras, cujas ações poderiam ser de grande impacto para a preservação cultural e ambiental de Tiradentes. Portanto, trata-se de um panorama muito sério, pois o terreno da Serra/Mangue, além de ser um local de lazer dos tiradentinos e turistas, é também área de preservação ambiental e refúgio de diversas espécies de nossa fauna e flora, sendo inconcebível e inaceitável a exploração mineral ou a especulação imobiliária. 

Considerando os objetivos do Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes, a saber, realizar pesquisas sobre a história local; proteger o patrimônio histórico, artístico, paisagístico, arqueológico, geográfico e cultural da região do Rio das Mortes; à instituição cabe, também, a responsabilidade na luta em prol de um dos nossos bens mais preciosos. 

Isso posto, o Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes endossa o coro pela não realização do leilão. Cabe ainda lembrar ser do IHGT a solicitação da abertura do processo de tombamento em nível federal da Serra São José junto ao IPHAN, ocorrida em 1979 (sendo esse um anseio que viria assegurar a preservação daquele bem). Solicitamos que seja dado andamento ao processo de tombamento por considera-lo uma importante ferramenta de preservação de nossa Serra.

A Serra é patrimônio nosso e não pode ser repassado para quem não fará sua preservação ou que minará a participação daqueles que construíram suas identidades em relação com aquele espaço. Muitas gerações futuras precisam e terão a Serra São José (e o Mangue) como um local de lazer e de memória. 

Seguimos firmes na luta pela preservação desse nosso importante patrimônio ambiental.



 

6.2.23

Vila de São José - 305 anos: fatos marcantes de sua história

 

 

Rogério Paiva – Sócio do IHGT

 



 

O brasão de armas do município de Tiradentes, presente também em sua bandeira, registra alguns dados sobre o lugar. Como informações geográficas, que são as referências naturais do antigo arraial de Santo Antônio, lá estão os contornos da Serra de São José, erguida pela natureza em tempos imemoriais a partir de alguma convulsão sísmica do planeta ainda criança. Aos pés da serra estende-se o tapete verde de mata atlântica. Logo abaixo corre, em sinuoso leito, o multimilenar Rio das Mortes.

 

Na parte superior do escudo temos informações políticas. Lá está, flutuando sobre a Serra de São José, em céu amarelo ouro, o triângulo vermelho, símbolo da Inconfidência Mineira, que também aparece na bandeira do Estado de Minas Gerais. Tal símbolo foi idealizado para compor a bandeira da República pretendida pelos inconfidentes de 1789 e, segundo declaração do próprio Alferes Tiradentes[1], simbolizava as três pessoas da Santíssima Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo.

 

Acima do escudo, como coroa, as silhuetas de três torres de castelo atestam a categoria de cidade[2] e, embaixo, o listel, caprichosamente disposto, traz, como informações históricas, o nome do lugar e as três principais datas de sua trajetória: 1718  - 1860 - 1889. Considerando essas três datas como vértices do supracitado triângulo, analisaremos brevemente esses momentos de glória da antiga São José do Rio das Mortes.

 

“1889” foi o ano da Proclamação da República no Brasil e o ano em que a cidade de São José del-Rei teve seu nome alterado para Tiradentes.  A sugestão para a mudança foi de Antônio da Silva Jardim, propagandista do movimento republicano. Em plena campanha política para a divulgação do movimento, o jornalista esteve em São João del-Rei, onde tentou discursar e foi hostilizado, no hotel em que se hospedara, pelos monarquistas[3] locais. Na viagem de volta ao Rio de Janeiro, pela Estrada de Ferro Oeste de Minas, ele passou por São José e discursou na estação ferroviária. Em sua fala, Silva Jardim chamou a atenção para a incoerência que havia no nome da cidade. Para ele, não fazia sentido a terra natal do Alferes Tiradentes, herói da Inconfidência Mineira, que deu a vida pela causa da liberdade e emancipação política da Colônia, ostentar o nome de um rei de Portugal.

 

A 21 de novembro de 1889, seis dias após a Proclamação da República, possivelmente inspirado pelo argumento de Silva Jardim, o Ten. Cel. João Luiz de Campos, em sessão especial da Câmara municipal, propôs a alteração do nome da cidade para “São José do Tiradentes”. Conforme consta da ata da reunião, a justificativa de Campos era de que o nome da cidade trazia “a ideia e recordação da monarquia que decaía e de cuja dinastia não existia membro algum, felizmente, nos Estados Unidos do Brasil”[4]. A proposta foi aprovada e a ata assinada por mais de setenta cidadãos ali presentes na ocasião. Na mesma sessão foi reconhecida a legitimidade do governo republicano e foi nomeada a mesa provisória da Câmara, então denominada “Conselho de Intendência Municipal”. Compunham a Câmara naquele dia: Francisco das Chagas Campos, Leopoldino de Souza Guerra, Antônio Teixeira de Carvalho, Oriel Lopes de Miranda, Manoel José de Almeida Franco, Gervásio Gonçalves Lara e Francisco Pinto de Assis Resende. No dia 6 de dezembro do mesmo ano, o governador provisório do Estado de Minas Gerais, José Cesário de Faria Alvim, por meio do Decreto nº. 3, determinou que a “cidade e município de São José del-Rei passem a ter a denominação de cidade e município de Tiradentes”[5].

 

Não se sabe o que levou as autoridades do Estado a reduzirem o nome proposto pela Câmara municipal, podendo-se considerar, dentre outras, a hipótese da orientação positivista do novo regime político. O nome do santo teria sido preterido em nome da laicidade do Estado? Essa hipótese parece-nos plausível se considerarmos que diversas localidades mineiras tiveram seus nomes originais, geralmente relacionados a santos ou à religião católica, alterados nas primeiras décadas do regime republicano. Hipóteses à parte, fato é que, à revelia do mencionado Decreto estadual, no final do século XIX e início do XX, alguns documentos oficiais da burocracia civil e eclesiástica local referem-se à cidade como “São José do Tiradentes” ou “São José de Tiradentes”. O nome oficial da cidade também era usado, mas parece que só se consolidaria localmente a partir de 1930, com a criação da prefeitura já no governo de Getúlio Vargas.

 

Consideramos que, com a denominação extraoficial de “São José do Tiradentes” homenageava-se o filho ilustre da terra sem dispensar a referência ao santo. O nome está presente na denominação da serra e nas imagens de São José de Botas que adornam o altar–mor da Matriz de Santo Antônio e o oratório que compõe a fachada do Chafariz da cidade. Talvez, para a população local, bem mais que a referência ao antigo rei de Portugal, o nome lembrasse o pai terreno de Jesus, daí a resistência em omiti-lo.

 

A data “1860” compõe o segundo vértice do triângulo que analisamos. No dia 7 de outubro daquele ano, a Lei 1.092[6], sancionada pelo Presidente da Província de Minas Gerais, Vicente Pires da Mota, elevou a Vila de São José del-Rei à condição de cidade, mantendo a mesma denominação. O ato foi significativo para São José, sobretudo por se dar após verdadeiro desastre histórico e político quando, no auge de sua decadência econômica, a vila perdeu a autonomia administrativa e seu território para sua maior rival. Em 30 de setembro de 1848, Bernardino José de Queiroga, então o Presidente da Província, por meio da Lei 360[7], suprimiu a Vila de São José del-Rei da Comarca do Rio das Mortes e incorporou seu município ao termo de São João del-Rei. A restauração ocorreria menos de um ano depois quando, a 20 de outubro de 1849, o novo Presidente da Província, José Ildefonso de Sousa Ramos, sancionou a Lei 452[8] que, em seu Artigo primeiro, devolveu a São José a condição de Vila.

 

Quando foi publicada a Lei 1.092, que elevava a Vila de São José del-Rei à categoria de cidade, integravam a Câmara de vereadores: Alexandre José da Silveira (Barão de Itaberava), padre Joaquim Gonçalves Lara, comendador Mathias Furtado de Mendonça, major Francisco de Assis Resende, capitão João Antônio de Campos, Vicente Teixeira de Carvalho e Manoel Gonçalves de Assis, eleitos em 7 de setembro de 1860.

 

Com a data “1718” completamos a análise do triângulo inconfidente. A Vila de São José  surgiu a partir do Arraial de Santo Antônio, existente desde 1702, quando o bandeirante João de Siqueira Afonso, natural de Taubaté, descobriu ouro nos arredores da Serra de São José[9]. Naquele tempo, o lugar era “uma solidão deserta”, e os aventureiros fundaram ali o “costumeiro arraial”[10].

 

Com o rápido desenvolvimento do arraial, e em atenção a requerimentos apresentados pela população estabelecida à margem direita do Rio das Mortes, o Governador da Capitania de São Paulo e Minas Gerais, D. Pedro de Almeida Portugal, criou, em 19 de janeiro de 1718, a segunda Vila da Comarca do Rio das Mortes, a oitava de Minas Gerais[11]. O argumento dos requerentes era a dificuldade de acesso a São João, sobretudo no período chuvoso, quando as águas do rio engrossavam consideravelmente, impossibilitando sua travessia, conforme consta da petição popular:

 

Dizem os moradores da Freguesia de Santo Antônio do Arraial Velho que eles se acham com grande prejuízo e impedimento para tratarem os seus negócios na Vila de São João del-Rei por estarem da outra parte do Rio das Mortes, cujas passagens são muito arriscadas e perigosas, principalmente no tempo das águas em que as enchentes o impossibilitam recorrer à Vila de São João del-Rei, e fica todo esse povo sem aquele recurso para as partes, além de ter experimentado que muitas pessoas, que neste tempo se arriscaram a passar, e se afogaram, por não haver canoas em que, com segurança, passassem, e perdem não só os seus negócios particulares, senão também os do bem público; como esta freguesia é uma das maiores das minas, e está mais distante da Vila, com muita largueza de matas para roças, como de lavras e faisqueiras permanentes, etc., tem os moradores as suas casas quase todas cobertas de telha, por estarem as olarias perto da Freguesia; e para que se possa melhor fazer o serviço de sua majestade, assim na arrecadação dos seus quintos, pois é sem dúvida que quantas mais pessoas nesta diligência se empregarem, tanto mais fácil será a dita cobrança e se não experimentará o que sucedeu este ano em algumas minas que pertencem a seus distritos excessivamente dilatados viram restos mais crescidos por cobrar, com grande detrimento e despesa da fazenda real na dilação da frota do Rio de Janeiro, como também serão mais bem obedecidas as ordens que vossa excelência for servido distribuir, cuja execução ficará mais pronta e facilitada, por haver muitos moradores e poderosos com os quais poderá conservar uma boa Vila, das maiores destas minas, sem desfalque da Vila de São João del-Rei, pode-lhe ficar ainda um grande direito; e porque já em outra ocasião, pelas justificadas razões que apontam, fizeram o mesmo requerimento ao antecessor de Vossa Excelência, ao que não foram deferidos, por se mandar informar de algumas pessoas que não tinham conveniência em que se erigisse em Vila o dito Arraial de Santo Antônio, suposto que de nenhum modo esta matéria prejudica a terceiros, antes, redunda em mais utilidade do serviço de Sua Majestade e bom regime dos povos. Esperamos da reta justiça de Vossa Excelência que, atendendo ao referido e por evitar algumas desuniões entre os moradores e pela utilidade do serviço de El-rei, lhe faça a mercê de erigir a dita Freguesia em Vila e receberão mercê (CUNHA, Transcrição do Auto de Criação da Vila de São José, 1982).

 

 Assinam a petição: João Ferreira dos Santos, José Ferreira dos Santos, João André de Matos, Silvestre Marques da Cunha, João de Oliveira, Miguel Rodrigues, Manuel Pinheiro, Domingos da Silva, José da Silva, Domingos da Rocha Moreira, Domingos Ramalho de Brito, Manuel da Silva de Morais, Diogo Alves Cardoso, Antônio Fernandes Preto, Gonçalo Mendes da Cruz, Manuel Martins Machado, Gonçalo Lima Rego e Domingos Ferreira dos Santos, o avô do Tiradentes.

 

Com a mudança de governo da Capitania, os requerentes renovavam o pedido de se criar a Vila do lado direito do Rio das Mortes, destacando que outra petição anteriormente apresentada fora indeferida pelo antecessor do Conde de Assumar, o governador Brás Baltazar da Silveira, por interferência de “terceiros”. Aparentemente, levando-se em conta o argumento presente no documento, de que a criação de nova vila não prejudicaria  a Vila de São João del-Rei, podemos inferir de onde eram esses “terceiros”. Talvez, para contornar esse empecilho, os moradores, desta vez, apelavam também para o senso de “bem comum” e, principalmente, para os interesses do erário, o que pode ter contribuído para o parecer favorável do Conde de Assumar:

 

Vistas as razões alegadas pelos suplicantes e as informações que delas tirei, concedo o que me pede, para que o dito Arraial de Santo Antônio seja erigido com o nome de São José, e o doutor Ouvidor Geral da Comarca do Rio das Mortes, ou que em seu lugar servir, levantará o Pelourinho e dará posse na forma do estilo, começando o distrito da nova Vila da banda de lá do Rio das Mortes (CUNHA, Transcrição do Auto de Criação da Vila de São José, 1982).

 

A 28 de janeiro de 1718, reunidos nobreza, clero e povo, foi cumprida a determinação do governador e lavrado o Auto de criação e posse da nova Vila pelo Coronel Antônio de Oliveira leitão, em substituição ao ouvidor Dr. Valério da Costa Gouveia. Foi levantado o pelourinho na praça defronte à Matriz de Santo Antônio e foram eleitos os vereadores: Domingos Ramalho de Brito, Manuel da Costa e Souza e Constantino Alves de Azevedo. Gonçalo Gomes da Cruz ocupou o cargo de procurador e Domingos Xavier Fernandes, o avô do Alferes Tiradentes, o de tesoureiro. Para juízes foram eleitos Manuel Carvalho Botelho e Manuel Dias de Araújo.

 

A 3 de fevereiro de 1718, por ordem do Conde de Assumar, foi nomeado o termo da Vila pelo  Ouvidor Geral da Comarca, que estabeleceu como limite entre as duas vilas o leito do Rio das Mortes, ficando os moradores da “banda de cá”  sujeitos a esta Vila[12], conforme consta do termo de repartição do distrito da Vila:

 

Aos três dias do mês de Fevereiro deste presente ano de mil setecentos e dezoito anos nesta vila de São José nas casas da câmara dela estando presente o ouvidor geral desta Comarca com os oficiais da câmara dela o juiz ordinário o Capitão Manoel Dias Araújo, o capitão-mor Manoel Carvalho Botelho também juiz, os vereadores, o capitão Domingos Ramalho de Brito, Manoel da Costa Souza, Constantino Alves de Azevedo e por impedimento do procurador assistiu o Sargento-mor Silvestre Marques da Cunha que para isso pelos ditos oficiais da câmara foi chamado, e sendo aí pelos ditos oficiais da câmara foi dito e Requerido ao dito ouvidor geral que em virtude do despacho da petição ao Senhor General lhe nomeasse o termo que devia ter esta Vila, o que visto pelo dito ouvidor, lhe nomeia por termo de divisa o Rio das Mortes da banda de cá entrando pelo Ribeirão chamado Alves por ser a verdadeira madre do dito Rio das Mortes e que os mais eram braços do tal rio e que outrossim eram os moradores do dito rio fregueses desta freguesia e estarem em posse desde a primeira criação sujeitos a freguesia de Santo Antônio a que chamavam Arraial Velho e que assim os moradores da banda do dito rio para cá sejam sujeitos a esta vila, e nesta forma houve o termo dela por divisado e de como os ditos oficiais assim o aceitaram e o dito ouvidor assim lho repartiu fiz este termo a que assinaram, eu Luiz de Vasconcelos Pessoa Escrivão da Ouvidoria Geral e correição que o escrevi. Antônio Oliveira Leitão, Manoel Dias de Araújo, Domingos Ramalho de Brito /Manoel da Costa Souza, Constantino Alves de Azevedo, Silvestre Marques da Cunha e Manuel Carvalho Botelho (CUNHA, Transcrição do Auto de Criação da Vila de São José, 1982).

  

A 7 de março do mesmo ano a Câmara de São José solicitou ao Governador a demarcação de sua sesmaria patrimonial e foi-lhe concedida “meia légua em quadra para nela ter rendimentos com que suprir as despesas públicas”[13].

 

A Câmara de São João reagiu, e a 28 de março foi feita nova demarcação da sesmaria patrimonial, que passaria a ser de meia légua em circunferência, tendo o Rio das Mortes como limite. Diante da polêmica sobre os limites das duas vilas o próprio Conde de Assumar veio a São José em setembro ou outubro de 1719[14], e determinou como limite o Rio Elvas até sua desembocadura no Rio das Mortes, que passaria a ser o limite dali para baixo.

 

Estabelecidos os limites, os ânimos, porém, não se acalmaram. De imediato a criação da nova vila gerou polêmica e disputa, e as autoridades da Vila de São João reclamaram diretamente ao Rei. A resposta de D. João V veio através da Ordem Régia de 12 de janeiro de 1719, que confirmou do ato do Conde de Assumar. Curiosamente, a irmã mais velha de São João, porque surgida primeiro como arraial, se tornava a irmã mais nova, enquanto vila, e disputaria de unhas e dentes seus vastos territórios. Sugerimos que  começou aí a disputa multissecular entre os sanjoanenses e os conterrâneos de Tiradentes, os munícipes de “São José dos jacubeiros”[15].

 

A polêmica em torno da criação a Vila de São José e de suas divisas com São João del-Rei alimentou a disputa entre as duas vilas durante os séculos XVIII e XIX. A proclamação da República e o consequente resgate da figura do herói da Inconfidência Mineira reacendeu a saborosa disputa, desta vez incluindo a questão da naturalidade do Alferes Joaquim José da Silva Xavier. O assunto, constantemente revisitado, atravessou o século XX, com publicações de lado a lado e o ato mais recente foi o pedido de registro civil tardio do Tiradentes como sanjoanense. Obvio que o ato e o fato ainda não são ponto pacífico nos debates acadêmicos. O tema apresenta controvérsias e comporta argumentos de lado a lado, e é nisto que reside seu imorredouro encanto poético. Ressaltamos, no entanto, que o terreno mais fértil a explorar nessa discussão não está simplesmente na questão da naturalidade do alferes, que se configura mais como uma disputa de egos intelectuais com pitadas pitorescas de paixão bairrista. O interesse e a importância historiográfica do assunto, em nossa concepção,  diz respeito ao estudo dos limites territoriais entre as duas vilas de El-Rei no bravio período colonial, tema que ainda oferece material a ser explorado pelos pesquisadores. Mas isso já é uma outra história, ou não.

 

Referências:

 

BURTON, Richard. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Trad. David Jardim Júnior. Belo Horizonte: Itatiaia,  São Paulo: EDUSP, 1976.

 

Coleção dos Decretos do Governo  Provisório do estado de Minas Gerais expedidos desde 3 de dezembro de 1889 a 13 de  dezembro de 1890. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1903. Disponível em <https://dspace.almg.gov.br/handle/11037/4695>. Acesso em 27/01/2023.

 

CUNHA, Antônio Geraldo da, Transcrição do Auto de Criação da Vila de São José. Rio de Janeiro, 1982

 

LAET, Carlos. Em Minas. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013.

 

Lei 360/1848 - Disponível em < http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/leis_mineiras_docs/photo.php?lid=6940> e em http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/leis_mineiras_docs/photo.php?lid=6942>. Acesso em 27/01/2023.

  

Lei 452/1849 - Disponível em <

http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/leis_mineiras_docs/viewcat.php?cid=1068>

 

 Lei 1092/1860 - Disponível em <

http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/leis_mineiras_docs/photo.php?lid=66228> e em <

http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/leis_mineiras_docs/photo.php?lid=66229> Acesso em 27/01/2023.

 

SANTOS FILHOS, Olinto Rodrigues dos. Guia da Cidade de Tiradentes: arte e história. 3. ed. Tiradentes, 2012.

 

VEIGA, José Pedro Xavier da. Efemérides de Minas Gerais. Ouro Preto: Imprensa Oficial, 1897.

 

VELLOSO, Herculano Batista. Ligeiras Memórias sobre a Vila de São José e seu termo nos tempos coloniais. Tiradentes: IHGT, 2014.



[1]          Interrogatório realizado em 18 de janeiro de 1790 (Cf. Autos da Devassa, v. 4, p. 52).

[2]              Registre-se que, em se tratando da categoria de cidade, o mais usual na heráldica é a representação de cinco torres aparentes.

[3]           Cf. LAET, Carlos de. Em Minas, 1894, p. 43.

[4]           Ata da Câmara de São José de 21/11/1889 – Resgate dos Acervos Históricos da Câmara de Tiradentes, CD 23, série 001.033.

[5]              Cf. Coleção dos Decretos do Governo  Provisório do Estado de Minas Gerais, 1903, p. 5.

[9]              Cf. VELLOSO, 2013, p. 16.

[10]             Cf. BURTON,1976, p. 132.

[11]             Em ordem cronológica: Mariana (08/04/1711), Ouro Preto (08/06/1711), Sabará (17/07/1711), São João del-Rei- (08/12/1713), Serro (29/01/1714), Caeté (14/02/1714), Pitangui (09/06/1715), São José  del-Rei (19/01/1718).

[12]               Cf. VELLOSO, 2013, p. 30.

[13]          Ibidem.

[14]              Cf. VELLOSO, 2013, p. 33.

[15]             Expressão pejorativa, segundo Richard Burton, com que os sanjoanenses de antigamente se referiam aos sanjosefenses. Segundo o viajante inglês, “jacuba” era a mistura de farinha de milho, rapadura e água (Cf. BURTON, 1976, p.134 ). Atualmente nós, tiradentinos (ex-sanjosefenses) mais tradicionais... conhecemos uma variante dessa mistura, que é farinha de milho com café, ou com leite. Eliminamos, da mistura, a água e a rapadura, mas continuamos “jacubeiros” e recomendamos a “iguaria”...