10.12.13

Capitão Manoel Dias de Oliveira: Parca documentação para uma longa vida

 Texto de Olinto Rodrigues dos Santos Filho

Publicado originalmente nos anais do I Encontro de Musicologia Histórica do V Festival 
Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga, JF - Centro Cultural Pró-Música, 1994.


            Falar sobre a vida do Capitão Manoel Dias de Oliveira é tarefa um tanto árida, pois a documentação sobre este compositor é um tanto parca e ainda não pesquisada até a exaustão. No princípio, Manoel Dias de Oliveira era apenas um nome em velhas partituras das corporações musicais de São João del Rei, Tiradentes e Prados e ninguém sabia sequer quando tinha vivido.


Tribuna do coro da Matriz de Tiradentes, onde Manoel Dias
exerceu a função de mestre de música.


            Parece-me que a primeira vez que o nome de Manoel Dias apareceu em letras de imprensa foi em 1915, em um discurso que o padre João Batista da Silva fez na inauguração do busto do insigne compositor sanjoanense Padre José Maria Xavier. Diz o referido padre que “José Maria conseguiu formar escola vencendo obras subscritas por Antônio dos Santos e Manoel Dias autor do Pange Lingua e Miserere... ”, opinião hoje muito contestável.


               E só em 1976-1977, por mãos do maestro Ademar Campos Filho, o nosso compositor volta a público na conferência realizada durante as comemorações do Bicentenário da Lira Sanjoanense, no dia 28 de janeiro de 1977. É nesta ocasião que se divulga a certidão de óbito de Manoel Dias, localizada no Arquivo Paroquial de Tiradentes, por Aluízio Viegas e Irmã Marina Dornas. Logo a seguir, aparece o delicioso artigo do compositor Welly Corrêa de Oliveira “O Multifário Capitam Manoel Dias de Oliveira”, na Revista Barroco número 10, em que cria uma história para o nosso Capitão Manoel Dias, com muita graça.

               Outras citações aparecem em diversas ocasiões, como em Música Mineira do Século XIX, do pesquisador e músico sanjoanense Aluízio José Viegas, no “III Seminário sobre a cultura Mineira, publicada em 1982”. Flávia Torni fez ampla pesquisa nos códices da Paróquia de Tiradentes, para sua dissertação de mestrado, trabalho que acompanhei de perto.  Hoje, Manoel Dias está definitivamente registrado na história da música brasileira.


Partitura antiga de obra de Manoel Dias de Oliveira, cedida pelo maestro 
Modesto Flávio.
             
              A Vila de São José, hoje Tiradentes, na época em que viveu Manoel Dias era uma Vila com cerca de 3.000 habitantes (1795) e uma extensa paróquia muito disputada pelos sacerdotes. Só a Vila contava com 10 sacerdotes. A tradição musical já arraigada, podemos constatar desde 1722, quando aparece citado no acórdão da Irmandade do Senhor dos Passos, em 14 de janeiro “Assim mais a música na forma acostumada...”(1) ou em 1745 onde consta “Contratar músicos a dois coros”(2). Há também ajuste com Lourenço Dias para tocar o órgão nas funções da irmandade, pelo preço de 12 oitavas de ouro ao ano, evidenciando a existência de um órgão anterior ao atual, na Matriz de Santo Antônio (3).

           Nos livros de receita e despesa dos Passos, aparecem parcelas de pagamentos diversos a música como em 1737: “Pela música 28” oitavas e 5 oitavas pelo  “Canto Xão”(4).

           Em 1756 paga–se “a música da Vila de São João 34” oitavas comprovando que os músicos atuavam em toda região de Tiradentes, São João e Prados (5).

            Na documentação da Irmandade de São Miguel e Almas aparecem pagamentos em 1730 e 40 “ao mestre Capella Cantor” a “Frei Belchior Cantor” e ainda a “música com harpa e rebecão e duas rebecas”(6). Também a Irmandade do Bom Jesus do Descendimento contrata os serviços dos músicos para as festividades que promovia principalmente a festa do Santo Nome de Jesus e a Procissão do Enterro, na Sexta-Feira Santa. Desde 1739, apareceram parcelas de pagamentos que variam de 7 oitavas a 24 oitavas de ouro, aparecendo  todos os músicos da Vila de São João e o Pe. Me. da Capela”(7). Também a Irmandade do Santíssimo faz muitos pagamentos pela música,  por anos seguidos.

             Mas, vamos a Manoel Dias de Oliveira. Além da documentação sobre sua vida ser parca e em mal estado de conservação, há uma terrível confusão para o pesquisador, pois existia um homônimo de Manoel Dias de Oliveira, também capitão e casado com uma mulher de nome parecido, Ana Maria. A de Manoel Dias de Oliveira era Ana Hilária. Em certos documentos não se sabe a quem se refere, como um mandado de pagamento da Câmara onde um deles aparece como contínuo nas festas de nascimento da princesa da Beira, em 30 de dezembro de 1793. Quanto a data de nascimento do nosso compositor há várias hipóteses, pois não há registro de batizado. Trazemos talvez a única novidade desta comunicação, que é um documento que cita a idade de Manoel Dias. Trata-se do “Rol dos confessados da Freguesia de Santo Antônio da Vila de São José”, datado de 1795, onde aparece o cabeça da família, com 60 anos, a mulher Ana Hilária com 41 anos, os filhos Maria com 25, Marcelina com 23, Francisco com 20, Manoel com 14 e José com 10, além de dois escravos Francisca de 19 anos, Miguel Angelo de 35 e um agregado João Francisco, criolo forro de 52 anos. Portanto, a data de nascimento de nosso capitão seria 1735 (8) Parece que após 1795 Manoel Dias teve mais quatro filhos, conforme informa Flávia Toni.

Rol dos Confessados da Freguesia da Vila de São José, 1795,
onde consta Manoel Dias de Oliveira e família, arquivo IHGT.


          Da vida profissional de Manoel Dias temos notícia a partir de 1769, quando aparece no livro de despesas dos Passos parcela de pagamento de 32 oitavas a ele pela música (9) e nos anos que se seguem de 1770, 1771, 1773, 1774, 1775 e 1777 continua recebendo sempre o mesmo valor com exceção de 71 que recebe 28 oitavas.

             Da Irmandade do Descendimento, o nosso compositor recebeu 12 oitavas pela música da procissão do Enterro em 1774 e 1782. Estes pagamentos devem se referir aos “quartetos vocais” atribuídos a ele, e ainda hoje cantados em Tiradentes que são: “Heu Salvator Nostri”, “Pupili”, “Cecidit Corona”, “Sepulto Domino” e o canto da Verônica “O vos Omnes”(10).

               Para a Irmandade do Santíssimo Sacramento, Manoel Dias dirigiu a música nas Semanas Santas de 1772, 1773, 1779, 1792 (11). Nos outros anos não aparece a especificação do nome de quem recebe pela música, ou aparecem outros executores.

Livro de recibos da Irmandade do Santíssimo 1779-1846, fls. 7.


                 Nas funções da Irmandade de São Miguel e Almas, Manoel Dias recebe 8 oitavas de ouro em 1775. Para as outras irmandades sediadas na matriz ele deve ter trabalhado também, embora não haja documentação sobre o assunto nas confrarias do Terço e Nossa Senhora da Conceição. Na Irmandade da Caridade há um termo de entrada de irmão de Manoel Dias, e ele sendo irmão, deveria pagar os anuais e jóias com música, como era usual. Na Irmandade das Mercês não encontramos nenhum pagamento a ele; na São João Evangelista onde era irmão, deve ter pago também com música.

           Sabemos também, através do Maestro Ademar Campos Filho e de Aluízio Viegas, que ele atuou em Prados e São João del Rei. Aliás, consta na documentação da Irmandade dos Passos em São João, em um inventário de 1812; “o aparelho de Música para as vias sacras do Senhor dos Passos composto por Manoel Dias e dois coros, com oito solfas das vozes, duas ditas para as flautas, uma para as trompas, duas para violinos e duas para o rabecões “hum aparelha a dois coros para o Miserere.” Deve tratar-se, portanto, dos motetos de Passos e o Miserere que eram executados durante a procissão e após o sermão (12).

               No livro primeiro de despesas do Santuário do Bom Jesus de Matozinhos de Congonhas, consta alguns pagamentos ao nosso compositor, pela música no Jubileu do Senhor de Matozinhos. Infelizmente não tive tempo de copiar esta informação, pois o livro se encontra na Cúria de Mariana e não posso precisar a data exata, mas foi na década de 1780.

Gazeta do Rio de Janeiro, 1816. Relato das Exéquias de D. 
Maria I, na Matriz de Santo Antônio, Tiradentes, quando 
foi executada música de Manoel Dias.


                Manoel Dias pertenceu a duas irmandades localizadas em São José. Em 1752 foi recebido na Irmandade de São João Evangelista dos homens pardos, em cuja igreja veio a ser enterrado (13). Em 1762 entra para a Irmandade de Nossa Senhora da Piedade da Caridade, sediada na Matriz, que recebia a todos, sem distinção de cor ou classe social. Consta “Manoel Dias de Oliveira músico” e diz que “este irmão fica remido pela obrigação em que consta em assistir (com) música a todas as solenidades desta venerável Irmandade”; em 1769 também entra para a mesma irmandade “Anna Hilária, mulher de Manoel Dias mestre de música nesta Vila, “ ficando também remida certamente porque o marido assistia com música a irmandade (14) Para a mesma irmandade entra em 1791 Francisco de Paula “filho do Capitão Manoel Dias de Oliveira músico” e  em 95 entra para a de S. João Evangelista e diz que pagou “a entrada com cantar ou tocar na festa da colocação”. Consta que morreu em 1829 e se em 1795 tinha 20 anos, nasceu, portanto, em 1775 (15). Este filho de Manoel Dias, que também foi músico, pode facilmente ser confundido com outro Francisco de Paula, filho do entalhador Salvador de Oliveira e também músico, que foi organista da Matriz. Este aparece em 1795 no Rol dos Confessados, com 28 anos, pardo e solteiro (16). Há ainda um registro de casamento de Francisco de Paula Dias de Oliveira filho de Manoel Dias e Anna Hilária, com Anna Balbina da Conceição, em 22 de julho de 1798 (17).

               Está ainda por determinar quem foi este Lourenço Dias, que foi organista da Matriz, na década de 1750 e que parentesco tinha com Manoel Dias. Seria um irmão? Em 1802 ele ainda estava vivo, pois aparece como testemunha no casamento de Estêvão Dias de Oliveira, outro parente de Manoel Dias, com Ana Cardozo da Silva. Infelizmente, como eram segundas núpcias, no Assento não consta os nomes dos pais deste Estêvão Dias de Oliveira, que poderia ser um irmão mais novo ou um sobrinho.

              A outra função de Manoel Dias era de calígrafo, o que parecia fazer nas horas vagas. O primeiro documento copiado por ele é o compromisso da Irmandade de Nossa Senhora das Mercês dos pretos crioulos da Vila de São José, datado de 1768 e assinada “Mel Dias” na folha de rosto. É um belo trabalho de caligrafia com vinhetas a bico de pena, copiada dos manuais portugueses para este fim. Depois aparece em 1784, um recibo passado à Irmandade do Bom Jesus do Descendimento de 17 oitavas de ouro pela cópia do compromisso daquela irmandade, incluindo as letras principais, papel de olanda, veludo, fitas e encadernação. Este documento se perdeu (18). Em 1789/90 ele recebe da Irmandade da Boa Morte da Borda do Campo (hoje Barbacena) 14$400(quatorze mil e quatrocentos reis) por escrever o compromisso, em papel de olanda e mandar fazer as letras douradas. Este documento ainda se conserva no arquivo daquela irmandade e o localizamos recentemente. A letra aqui já não é tão firme como no das Mercês, mas continua muito regular e redonda (19).
Livro de Compromisso da Irmandade de N. Sra.
 das Mercês, 1768, copiado por Manoel Dias

                  Segundo informações do Maestro José Maria Neves, encontra-se no arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa, o registro da patente de Manoel Dias como “Capitão da ordenança de pé dos homens pardos libertos do Distrito de Lage da Freguesia de São José do Rio das Mortes”, passada em 1772, em conformidade com a real ordem de 22 de março de 1766. Certamente a confirmação é muito posterior a nomeação pelo Capitão General Governador de Minas, pois em 1769 ele já usava o título de capitão. O documento ainda diz que não recebe soldo. Sua praça é hoje a cidade de Resende Costa (20). Finalmente Manoel Dias morre aos 78 anos, de doença do peito, certamente tuberculose, sem grandes posses, pois não deixou testamento e parece que não foi inventariado, pois nós não localizamos nada até hoje.


Livro de Compromisso da Irmandade de N.
Sra. da Boa Morte de Barbacena,  1790.


                     Pelo assento de óbito confirma-se a sua cor parda e nos informa que foi enterrado na campa de número dois, da igreja dos Pardos de São João Evangelista; bem aos pés do nicho de Santa Cecília. É interessante notar que a Irmandade de São João Evangelista abrigou uma grande quantidade de músicos nos seus quadros e é a única igreja de Tiradentes em que existe a imagem de Santa Cecília. Seria uma irmandade informal dos músicos mulatos? Pelo mesmo assento, também sabemos que Manoel Dias teve ofício fúnebre a dois coros de música, talvez de sua autoria. Como se trata de documento importante, transcrevo-o aqui

“Aos dezenove dias do mês de agosto de mil oitocentos e treze faleceu com todos os sacramentos, de moléstia do peito o Capitão Manoel Dias de Oliveira, pardo, casado com Anna Hilária, mestre compositor de música, amortalhado em hábito de São Francisco, aos vinte do dito mês e ano teve ofício digo aos vinte e hum do dito mês e ano se lhe fez ofício, com os sacramentos digo sacerdotes que se acharão a dois coros de música encomendado pelo segundo coadjuntor Revdo. Ronaldo Bonifácio Barbosa Martins, e sepultado dentro da capela de São João Evangelista em cova de número duas de que para constar fiz este assunto que por verdade assignei o coadjuntor João Miz Lopez” ( 21).
Livro de Assento de Óbitos da Matriz de Tiradentes, 1812 -
1828.  fls. 10 vo.
             Não vou falar aqui de suas composições musicais, porque não é de minha competência, mas segundo o Aluízio Viegas, já temos identificadas mais de 40 peças de sua autoria ou a ele atribuídas e me parece que a única peça autografada de Manoel Dias é “Tractus, Paixão e Bradados de quarta feira santa, datado de Vila de São José 12 de março de 1788,” hoje no Arquivo Curt Lange, depositado no Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, certamente originário do Arquivo da Orquestra de Joaquim Ramalho. Também são originários da mesma Orquestra os “Motetos de Passos a oito vozes” (cópia de 1889) e os “Tractus e Bradados de sexta feira da Paixão a 4 vozes” ‘copiados por Oswaldo Fonseca e João Evangelista Bernardes em 1923 (22).


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  NOTAS


(1)                Livro de acórdãos dos Passos 1722-1829- fls. 2
(2)                Idem fls. 14
(3)                Livro de Acórdãos dos Passos- 1722-1829-fls. 28- Acórdão de 1758.
(4)                Livro de Receita e Despesa da Irmandade dos Passos- 1725-1849-fls. 12 e 14 vo.
(5)                Idem fls. 52.
(6)                Livro de Receita e Despesa da Irmandade de São Miguel e Almas- 1730-1881- fls. Sem número.
(7)                Livro de Receita e Despesa da Irmandade do Bom Jesus do Descendimento-1730-1767- fls 19-25 e outras.
(8)                Livro de Rol dos Confessados da Vila de São José- 1795- fls.- sem número do Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes.
(9)                Livros de Receita e Despesa da Irmandade dos Passos-  1725-1785-fls.84 vo.
(10)             Livro de recibos da Irmandade do Bom Jesus do Descendimento- 1776-1860-fls. 4 vo e7 vo.
(11)             Livro de Receita e Despes da Irmandade do Santíssimo Sacramento- 1761-1797-fls. 62, 83 vo, 125.
(12)             Livro de termos de entrada de irmãos da Irmandade  dos Passos e inventário- 1812-1856- fls. 206- Arquivo Paroquial do Pilar de São João del Rei.
(13)               Livro de termos de entradas da Irmandade de São João Evangelista- 1765-1790- fls. 9 vo.
                                              “1765”
                          Aos 2 dias no mês de janeiro de 1765 nesta vila de São José da Comarca do Rio das Mortes, estando  preze. Manoel Dias de Oliveira por me foi pedido queria acentar-se nesta venerável Irmandade de São João Evangelista e como com efeito se acentou se obrigou as disposições do compromisso da mesma irmandade declarando também (...) já  e noutra ocasião acentado por irmão da mesma aos 27 dias do mês de junho de 1752 como consta no livro velho viciado de que fiz este termo em que comigo assignou.
                      Estevão Feres dos Santos
                      Manoel Dias de Oliveira
                      Faleceu no dia 20 de agosto de 1813”.
(14)             Livro de termo de entrada de irmãos da Irmandade da Caridade 1758-1817- 59 vo. E 71 (?)
(15)              Livro de entrada de irmãos da Irmandade de São João Evangelista- 1790-1806- fls. 28.
(16)             Rol dos Confessados, documento já citado.
(17)             Livro de Assentos de Casamentos – 1784-1819-fls.119.
(18)             Livro de Recibos da Irmandade de Bom Jesus e Descendimento 1776-1860- fls. 9 vo.
(19)              Livro de Receitas e Despesas da Irmandade da Boa Morte da Borda do Campo (Barbacena) 1789-1836- fls. 2.
(20)              José Maria Neves, texto do Encarte do Disco da Orquestra Ribeiro Bastos- Festas de Passos em São João del Rei.
(21)              Livro de Assento de Óbitos da Matriz de Tiradentes – 1812-1828- fls.10 vo.
(22)              Acervo de Manuscritos Musicais – coleção Curt Lange. Museu da Inconfidência, Ouro Preto Ed. UFMG, BH, 1991, pag. 48 e 50.







13.11.13

Antônio Gomes - Artista Popular (1895-1978)


Pintura óleo sobre tela de Fernando Pitta,
1984.


Povoando a nossa infância em Tiradentes, aconteciam os fogos das festas tradicionais que a todos encantavam. Estes fogos de artifício, foguetes e rojões eram pacientemente fabricados numa “foguetaria”, pequeno barracão, que dava para a “praia”, nos fundos da casa de Antônio Gomes. “Sontonho Fogueteiro”, figura doce de bom velhinho, cabelo branco, curvado sobre o próprio corpo, devido a um acidente na foguetaria, lá pelos anos 20, era uma espécie de homem dos sete instrumentos. Fazia tudo que a habilidade manual proporciona: foguetes, consertava sapatos, fazia e consertava santos, guarda-chuvas, ou melhor, chapéu-de-sol como se chamava naquelas época, pintava, fazia caixão para os pobres defuntos, cobertos de pano roxo ou branco, conforme o estado do falecido, restaurava os toucheiros das igrejas, fazia túmulo com lápide em cimento relevado em caracteres e flores ingênuas. Misturava com ciência, gosto e dedicação os pigmentos naturais para produzir os melhores ocres e sangue-de-boi para colorir suas janelas. Este era um dos ofícios que nos encantava, porque enquanto ele socava e peneirava os pigmentos, ia nos dizendo como ficaria as cores que ele havia aprendido a fazer com um certo pedreiro que todos os anos, pela Semana santa, “limpava” as fachadas do casario colonial de Tiradentes. Seu lema, que era uma máxima do tempo de nossos avós, “a pressa é inimiga da perfeição”, seguia a risca pois levava anos para terminar qualquer trabalho.


Aspecto da abertura da exposição, 1987.


Por ocasião da Festa de Passos, esmerava-se na armação do Passo da Cadeia, com velho setiais, sanefas e frontais do século XVIII, guardados com cuidado religioso. No Natal, enchia nossos olhos com um presépio dos mais encantadores. A função começava com o plantio de arroz em latinhas de marmelada para enfeitar a montagem, depois vinha a confecção das serras com sacos de amiagem ou de papel grosso, onde se espalhava grude de polvilho e depois salpicava o carvão socado, areias coloridas (branca, rosa, amarela e preta) e malacacheta. Terminado os preparativos, fazia a estrutura com mesas e armação de madeira, guarnecida com ramos de murta, recoberta com um pano azul estrelado, formando a abóboda celeste, e o fundo com serras e uma paisagem de Belém de Judá, pintada por ele. Finalmente, colocava as peças e salpicava areia branca entre os musgos e orquídeas já colocados.


Queima de fogos na abertura da exposição, feita por
João Goulart Silva

Mas o ofício mais importante pela sua expressão de arte popular da maior pureza e ingenuidade era sua profissão de santeiro e pintor. Produziu poucas peças durante toda sua vida e praticamente quase todas para seu próprio deleite e uso particular. Destaca-se na sua obra um presépio, hoje incompleto, baseado nas peças de um conjunto setecentista em terracota, pertencente a “Sá Cota Velozo” (Maria José Velozo), que hoje lamentavelmente se encontra em São Paulo, no Museu dos presépios. As figuras principais (Nossa Senhora com o Menino, camelos dos Magos, guardador de gado) foram copiadas daquele presépio, mas com um tratamento pessoal de gosto ingênuo. A estas figuras principais (os reis foram vendidos por ele mesmo a um turista), ele acrescentou figuras de sua imaginação de delicioso naif: a camponesa, com a saia ligeiramente levantada e seu cestinho; o pescador, com vestes contemporâneas; a “entrevada”, com as pernas cobertas por seu vestido de gola alta, baseada em uma figura do cotidiano tiradentino; o pedidor de esmolas, com seu pires; o cego tocador de flauta; e os bichos tradicionais do presépio (carneiro, vaca e burro). Neste presépio, existia ainda um “negrinho” feito a semelhança de seu empregado, infelizmente esta peça desapareceu. Produziu ainda para a Capela de Nossa Senhora do Pilar do Gaspar uma imagem de Nossa Senhora da Saúde e um São João Batista, estáticos, quase hieráticos, com seus rostos ingênuos e olhos grandes. Deve ainda existir uma outra peça com particulares e capelas.


Aspecto da abertura da exposição, 1987.

Outro lado da produção do velho Antônio Fogueteiro, ainda mais deliciosamente popular, são os panos pintados: o já citado painel de fundo do presépio com uma Belém, provavelmente baseada em estampas antigas e os quadros para os fogos de artifícios, diversos santos, uns pintados, outros colagens com complementos de pinturas, todos gastos pelo uso e escurecidos pelo fogo. Os fogos eram em pequena quantidade, poucas cores, mas de execução esmerada e durante cerca de 50 anos serviu a todas as festas de Tiradentes e capelas rurais. Confeccionava todos os anos o “Judas” era queimado na Praça do Chafariz, para este acontecimento era montado um ambiente chamado de “Chácara do Judas”. Mas o seu maior prazer era atear fogo ao foguete e acompanhar sua trajetória, com os olhos emocionados, até abrir-se em lágrimas coloridas.

Fotografia de Antônio Gomes


Na sua vida, marcada sempre pelo bom humor e cordialidade, foi presidente da Conferência der São Vicente de Paulo da Igreja do Rosário e delegado de polícia. Nasceu em 1895 e faleceu em 1978.



Olinto Rodrigues dos Santos Filho - Sócio do IHGT
(Texto escrito para a exposição promovida pelo Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes
 entre 18/07 a 20/08/1987, no Sobrado Ramalho)



6.11.13

Concerto Bicentenário Manoel Dias de Oliveira: Lira Ceciliana


No dia 3 de novembro deste ano, se apresentou na Matriz de Santo Antônio de Tiradentes a Orquestra “Lira Ceciliana”, da cidade de Prados, sob a presidência de Rejaine Almeida Rezende e a regência do maestro Ademar Campos Neto, em comemoração ao bicentenário da morte de Manoel Dias de Oliveira. 


Músicos da Orquestra Lira Ceciliana em apresentação na
Matriz de Santo Antônio, Tiradentes.

                        
O Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes e a Sociedade Orquestra e Banda Ramalho agradecem sensibilizados aos músicos e ao maestro a brilhante apresentação, que contou com repertório de autoria do Capitão Manoel Dias, incluindo um Magnificat do museu da música de Mariana, ainda quase desconhecido, e do “Miserere” acompanhado de órgão. Na segunda parte do concerto, foi apresentada uma peça do maestro Ademar Campos Filho, à maneira de Manoel Dias. O maestro Ademarzinho foi autor da melodia do hino da cidade de Tiradentes e foi sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes.

O concerto também contou com uma peça de Geraldo Barbosa de Souza, contrabaixista da Lira Sanjoanense, falecido em 2011, e uma bela abertura do Pe. João de Deus de Castro Lobo (1794-1832), que foi organista da igreja de São Francisco de Mariana.

Olinto R. Santos, Sócio do IHGT.

28.9.13

30 de setembro de 1848 – a queda de uma vila

         
   “Não se pode dizer de Ouro Preto que seja uma cidade morta. 
Morta é São José Del-Rei” (Manuel Bandeira – 1938).


Dizer que a cidade de Tiradentes, antiga São José d’El-Rei é um dos núcleos urbanos setecentistas mais preservados do país é repetir o obvio, afinal, basta observá-la para constatar que se manteve praticamente inalterada ao longo desses três séculos de história. Permanece, em linhas gerais, o traçado original das ruas, becos e praças do núcleo histórico. Mantêm-se intactos os principais prédios da arquitetura civil e religiosa, com destaque para a Matriz de Santo Antônio e o Chafariz de São José.  Manteve-se relativamente preservado - até recentemente (hoje nem tanto) - o entorno que compõe harmonicamente o conjunto dominado pela Serra de São José. Por outro lado, sabe-se que a cidade preservou-se graças ao empobrecimento. À depressão econômica resultante da exaustão da atividade mineradora, no final do século XVIII, seguiu-se longo período de estagnação econômica, que acabou por preservar a estrutura da primitiva vila. Foi assim durante todo o século XIX e parte do XX e, nesse ínterim, ocorreu o fato dramático da perda da autonomia política em 1848.

A Vila de São José, criada a 19 de janeiro de 1718, é originária do acampamento de garimpeiros resultante das descobertas de João de Siqueira Afonso em 1702. Formou-se imediatamente o Arraial de Santo Antônio do Rio das Mortes, com intensa imigração. Instalada, a vila experimentou rápido crescimento econômico e territorial, chegando a fazer divisa com a Capitania de Goiás. No auge, o ouro farto, facilmente colhido à flor da terra, propiciava ruas movimentadas e uma intensa atividade econômica, social e cultural. Templos magníficos, dominando o conjunto de vetustas casas senhoriais, manteriam para a posteridade uma amostra da riqueza fácil da terra. 

Nos bons tempos, São José chegou a rivalizar, e com vantagem, a futura “Princesa do Oeste”. Em 1729, por exemplo, enquanto a Câmara de São João devia a Portugal, a título de donativo real, 5.452 oitavas de ouro, a Câmara São José estava obrigada a algo em torno de 8.609 oitavas, o que refletia, certamente, seu maior cabedal. Naquele mesmo ano, São José contabilizava, a mais que São João, 1971 escravos e 57 vendas, dentre outros indicadores. A rivalidade entre as duas vilas começara em 1718, quando a Câmara de São João protestou a El Rei D. João V contra a criação da Vila de São José, iniciando-se, então, uma polêmica questão de limites entre as duas vilas, que persiste ainda em nossos dias. 

O esgotamento do ouro de aluvião e a dificuldade para a exploração do ouro em profundidade trouxeram a crise, agravada pela sequência de emancipações de distritos como São Bento do Tamanduá (Itapecerica) em 1789 e Igreja Nova (Barbacena) em 1791, dentre outros. Na sede da vila a decadência foi mais sentida. À estagnação econômica seguiu-se o esvaziamento populacional e a decrepitude do casario gradativamente abandonado e até demolido para a venda do material destinado a novas construções em São João Del-Rei. A extração do ouro, que na década de 1750 ultrapassara as 100 arrobas, caiu para 86 na década seguinte e para 68, na década de 70. Ocorreu, então, a migração de mineradores e escravos para as fazendas de café do vale do Paraíba. Os que ficaram dedicavam-se a atividades de subsistência, à agropecuária caseira, e a tímidas iniciativas empresariais, como tecelagem, cerâmica e ourivesaria. O primeiro censo oficial da Província de Minas, em 1831, encontraria em São José uma população de apenas 3055 pessoas. Era a decadência, num ritmo gradativo e constante.

O aspecto de abandono da Vila, em contraposição ao seu passado glorioso, foi destacado por todos os visitantes ilustres do século XIX. De maneira geral, todos apontaram para uma situação de crise. Já em 1818 Johann Emanuel Pohl fala de muitas minas abandonadas e conta, na vila, apenas 500 casas. Auguste de Saint Hilaire, no mesmo ano, viu muitas escavações, mas constatou que a mineração ali já era atividade encerrada. Na década seguinte, o Reverendo Walsh registra um momento de efêmera reação econômica, com a chegada dos ingleses da General Mining Association, que logo desistiram. O inglês Richard Burton, na década de 1860, contou, na vila, cerca de 300 casas e uma população de 2500 pessoas, na maioria desocupadas, que só faziam jogar peteca e comer jacuba. O mato crescia nas ruas desertas e o aspecto de abandono da cidade impressionaria, em 1893, a Olavo Bilac. O poeta, invadido por “uma melancolia súbita”, passou pela Praça do Chafariz, atravessou a velha cidade “amortalhada num silêncio de cemitério”, visitou a fantasmagórica Matriz de Santo Antônio e partiu de Maria Fumaça, meio incrédulo, refletindo a respeito da vila morta.

Um dia para não se esquecer foi 30 de setembro de 1848, quando a Lei provincial nº. 360 suprimiu a autonomia política da Vila de São José, integrando seu território à São João del-Rei. Humilhação extrema, que durou quase um ano, mas foi revogada por força de mobilização popular. A restauração da vila veio pela Lei 752 de 20 de outubro de 1849, fato, porém, que não alterou a realidade decadente de São José. Situação que ainda duraria mais de um século, até a cidade ser resgatada dos escombros para a exploração de sua nova riqueza: o turismo.

Texto do sócio Rogério Paiva,
Sessão de 15 de setembro (efeméride de setembro)

6.9.13

Presépios Antigos



Uma tradição quase perdida


          A tradição de montagem de representação do nascimento de Cristo vem da Idade Média e é atribuído a São Francisco de Assis ou aos Franciscanos. Ainda hoje é tradição a montagem dos presépios nas igrejas franciscanas, e em todo o mundo católico. Parece que inicialmente foi montado um presépio vivo, com atores trajando  vestes bíblicas e animais vivos. Posteriormente passou-se a ser feito com figuras esculpidas nos mais diversos materiais e formas, com um rancho onde se colocava a manjedoura, ou ainda uma gruta ou às vezes ruínas clássicas do renascimento italiano. Mas foi no século XVII e XVIII, que se disseminou os presépios grandes, a exemplo dos ditos “napolitanos”, em que as figuras geralmente eram vestidas com tecidos naturais ricos, como brocados. O presépio napolitano, além da cena central bíblica, incluía cenas diversas do cotidiano, onde os personagens usavam vestes contemporâneas, da época da confecção. A tradição dos presépios passa para a Espanha e Portugal e também para suas colônias. Em Portugal foi muito comum o uso de presépios de terracota, com grande número de figuras e presépios colocados em maquinetas envidraçadas. Daquele tipo, os mais espetaculares, são os confeccionados pelo escultor Joaquim Machado de Castro (1731-1822) para a Sé de Lisboa (1766) e o da Basílica do Sagrado Coração de Jesus da Estrela, de grandes proporções, com mais de 500 peças em magnífica caixa dourada. Outros presépios de menores proporções de uso privado, também foram comuns em Portugal e suas colônias.


Presépio da Basílica da Estrela, Lisboa.

Presépio da Sé de Lisboa, 1766.

             Em Minas antigamente existiam muitos presépios neste tipo de maquineta, como os dois expostos no Museu da Inconfidência e o da igreja do Amparo de Diamantina, doado à igreja em 1797. Magnífico seria o presépio feito pelo Aleijadinho (1738-1814) para a igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Ouro Preto, por volta de 1790, do qual só restam quatro peças secundárias, hoje no Museu da Inconfidência. Os presépios com grande número de peças soltas só montados na ocasião do natal se perderam em sua maioria. Ainda existem alguns presépios com grande número de peças como de uma família Viegas, de São João Del Rei, hoje exposto no Museu de Arte Sacra. A família o atribui a Joaquim Francisco de Assis Pereira, mas as figuras principais parecem ser de origem setecentista.



Presépio da Igreja do Amparo - Diamantina, 1797.
Presépio do Museu da Inconfidência, séc. XVIII.












São José e Nossa Senhora, imagens de presépio
do Palácio do Bispo de Diamantina, séc. XVIII.




Figuras de presépio de autoria de Aleijadinho, proveniente da Igreja de S. 
Francisco de Assis, cerca de 1790, Museu da Inconfidência, Ouro Preto.


            Tradição quase desaparecida em Minas Gerais e principalmente na nossa Tiradentes é a armação de presépios nas casas nas vésperas do natal até o dia de Reis (6 de janeiro) segundo uns ou até o dia  de Nossa Senhora das Candeias (2 de fevereiro) segundo outros. Na minha casa sempre se desmontou o presépio no dia de Nossa Senhora das Candeias, quando termina o ciclo natalino.

           Mas o que eu quero comentar são os presépios antigos que havia na nossa cidade de Tiradentes, que com o tempo desapareceram. Um dos mais curiosos e incrementados era o da Conceição Lopes, que morava com sua irmã paralítica de nome Belica, na rua de cima ou Padre Toledo número 106.  Esse presépio, cujas peças ou figuras não tinha muita importância, primava pela montagem, com grande quantidade de casinhas de papelão, madeira, barro, tronco de piteira ou sei lá o que. Eram coloridas e encantavam as crianças. Havia muitas bonecas, daquelas de papelão ou papel machê, vestidas de anjo.Tinham também serras e cachoeiras. Só restou atualmente desse presépio o curral ou quiosque onde se colocava a manjedoura com o Menino Jesus. É muito bem acabado com telhado em quatro águas e todo pintado de azul.

Presépio de Conceição Lopes, foto de João B. Ramalho, déc. de 1930.


        Outro presépio de estrutura curiosa era o de Antônio Ferreira Gomes, o Antônio fogueteiro. As imagens ou figuras foram confeccionadas por ele mesmo em barro cozido, sendo que, algumas peças, não chegaram a ser cozidas. Para as peças principais como Nossa Senhora com o Menino, os reis magos, os camelos e outros ele usou como modelos as peças do presépio de Maria José Veloso (falecida em1946) que era montado em sua casa à Rua Padre Toledo. Era um presépio setecentista. Outras peças foram por ele acrescentadas, em outro estilo mais próximo da época em que viveu como o pescador de calça arregaçada e chapéu; o flautista cego, também vestido à moda novecentista, a paralítica, inspirada em uma pessoa local, o pedidor de esmola com pires na mão. História curiosa é do São José que era criação dele. Segundo o que ele me disse o herdeiro do presépio de (Sá Cota) Antônio Veloso, não quis emprestar-lhe a peça para copiar e ele teve que fazê-la de Memória e nunca chegou a queimá-la e policromá-la. Outra curiosidade é que, passando um visitante pela cidade, viu seu presépio montado e quis comprá-lo. Ele não quis vendê-lo, mas para não deixar o pretendente à compra, frustrado vendeu-lhe apenas os três reis magos, deixando para trás os seus camelos e pajens. Portanto não conhecemos o presépio com os reis magos.


Presépio de Maria José Veloso (Sá Cota Veloso), com a Antônio
Bento Veloso sentado à frente. Acervo do IPHAN, déc. de 1950.


           A armação do presépio era outro capítulo da história. Era sempre montado muito próximo ao Natal; ou em certos anos chegou até ser montado depois do dia 25 de dezembro, mas antes do dia 06 de janeiro, para o “Dia de Reis”; tamanha era a pachorra e lentidão do bom Antônio Gomes (1895-1978), que também era o autor do Judas, que se queimava no sábado de Aleluia. Era montado na sala, na parede fronteira à fachada de sua casa situada à Rua Direita número 111, em estrado com tábuas velhas e ripas nos cantos, para sustentar a abóboda celeste, feita em um pano azul com estrelas de papel prateado; nas laterais eram colocados os ramos de “guamerin”, uma planta semelhante à murta européia, cuja semente é em forma de bolinhas vermelhas que dá na época do Natal. No fundo era colocada a “serra” confeccionada com saco de amiagem, onde ele passava grude de polvilho e salpicava uma mistura de areia branca, carvão e outros pigmentos, que ele socava em um grande almofariz de ferro de sua foguetaria. Por fim era colocada uma “vista” de Belém de Judá, pintada em tela por ele mesmo, baseada em ilustrações da história sagrada. Para montar a “serra” ele colocava uma armação com caixilhos velhos de vidraças e outros objetos. Finalmente colocava-se areia quartzita branca da serra, fazendo o piso; e os musgos, bromélias, pequenas  orquídeas  e plantas típicas de campos rupestres. Então eram colocadas as figuras distribuídas com cuidado, a paralítica sempre ficava mais alta, na “serra”. Ainda havia o laguinho feito de espelho e arroz plantado em latinhas para fazer uma vegetação mais verde. Certa vez minha mãe encomendou a ele um presépio; que ele prometeu fazer, mas durante muitos anos ficou só na promessa, até que ele entregou a primeira peça, um pescador, que ainda conservo até hoje. Após sua morte, em 1978 a viúva e os herdeiros venderam o presépio a Yves Gomes Ferreira  Alves, que o manteve em casa. Durante alguns anos ele me foi emprestado, para eu montá-lo na Matriz, na igreja do Bom Jesus e no Passinho do Jardim (Largo das Forras). Após a morte de Yves  e de sua mulher Dalma, os filhos o doaram ao Centro Cultural, que o vem montando, mas de maneira mais simples. Infelizmente parece que algumas peças se perderam, como a paralítica. Este presépio deve ser conservado como um patrimônio da cidade de Tiradentes e faz parte do imaginário da população mais velha.


Presépio de Antônio Ferreira Gomes, acervo IPHAN, 1954.

Presépio de Antônio Gomes montado em 2012 no Centro Cultural Yves Alves.

            O mais espetacular presépio era o de Maria José Veloso a “Sá Cota”, que passou por herança a Antônio Veloso, que morava na Rua Padre Toledo nº 23, próximo à Matriz. Como a casa de Antônio Veloso era muito pequena, raramente o presépio era montado inteiro, mas o ano todo ele ficava em uma “redoma” ou caixa envidraçada, na sala de sua casa. Ficavam expostas apenas as peças principais, como Maria, José e o Menino Jesus. Tratava-se de um presépio do século XVIII, em terracota, com as figuras maiores, possivelmente de origem portuguesa, de extrema qualidade plástica, e baseado nos presépios portugueses, como os de Machado de Castro na Sé de Lisboa e na Basílica da Estrela.  Além da Virgem com o menino no regaço, São José, os reis magos; havia pajens, grupos de camelos e outras figuras. Foi realmente uma perda para a cidade, a sua venda. Após a morte de Antônio Veloso, que era zelador da Matriz e acertava o relógio da torre, o presépio ficou com um de seus filhos, que o levou para Lavras- MG e o vendeu ao médico pesquisador e colecionador Eduardo Etzel (1906-2003), que publicou a foto da Virgem com o Menino e São José no seu livro “Imagem Sacra Brasileira” São Paulo, Edição Melhoramentos/ Ed. da USP, 1979, página 130, com a legenda dizendo que “pertenceu à antiga igreja de Tiradentes”, o que não é correto, pois ele sempre pertenceu à família Veloso. A essa altura o Etzel já o havia vendido ao museu de presépios de São Paulo. Com a extinção deste museu, as peças passaram para a propriedade do Museu de Arte Sacra de São Paulo; onde atualmente se encontra.

Figuras do Presépio de Maria José Veloso expostas por
ocasião da mostra "Brasil 500 Anos", em SP. Acervo
do Museu de Arte Sacra de SP, foto do catálogo
"Arte Barroca: mostra do descobrimento".
         
           No ano de 2000 as peças principais do presépio de “Sá Cota Veloso”, foram expostas na “Mostra do Redescobrimento 500 anos de Artes Visuais Brasil”, no Parque do Ibirapuera, Módulo da Arte Barroca, organizado por Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, em cenário de Bia Lessa. Fotografias das peças foram publicadas no catálogo da exposição, página 249.

            Há ainda que  se dizer que a Virgem mantém o seu diadema original de prata com estrelas e o São José, o seu resplendor de prata com uma pedra e raios ondulados, datável da primeira metade do século XVIII.

             Muitos anos após a venda do presépio, Yves Alves, indagando ao antigo proprietário, sobre ele, descobriu dois ou três fragmentos de peças de terracota do presépio que não foram na venda, e ele os adquiriu, tendo eles permanecido em sua casa, até sua morte. Certa vez os expomos na Capela do Bom Jesus da Pobreza, em exposição sobre o Natal. Para ter-se uma ideia do seu tamanho, a Virgem com o Menino mede 25 cm e o São José 35 cm de altura.

             Outros presépios antigos existiam na cidade de Tiradentes, dos quais não se tem notícia. O de Ernestina dos Reis, também ficava em caixa de vidro; segundo ela nos disse, mas não chegamos a vê-lo.

Figuras de Presépio de Maria José Veloso, ainda no Museu de
Presépios de SP. Foto do livro "Imagem Sacra Brasileira",
 de Eduardo Etzel, 1979.
           
            Outra pessoa da família Veloso, a figura folclórica de “Maria do Gato”, irmã de Antônio Veloso, proprietário do presépio, mantinha montado em sua casa, onde hoje é a padaria Padre Toledo, um presépio cheio de bonecas e de gatos vivos; e se auto- intitulava “Maria do Presépio”. Na casa de Antônio Sotero da Costa, o “Antônio Lourenço”, montava-se um belo presépio, por ocasião do natal. Ele tinha uma única peça de autoria de Antônio Gomes. Conta-se também, que em casa de Antônio de Pádua Falcão, na Rua da Câmara nº 78 montava-se um belo presépio, que era aberto ao público, isso no início do século XX.


Texto do sócio Olinto Rodrigues dos Santos Filho.

20.8.13

José Basílio da Gama: perfil do poeta sanjosefense


Rogério Paiva - Sócio do IHGT
18/08/2013
 
José Basílio da Gama nasceu a 22 de julho de 1740 na antiga Vila de São José del-Rei, atual cidade de Tiradentes, sendo batizado a 06 de dezembro de 1741. Descendia de duas tradicionais famílias portuguesas: os Villas Boas e os Gama. Seu pai, Manoel da Costa Villas Boas era natural de Barcelos, Portugal, filho de João de Villas Boas e de Maria da Costa. Quitéria Inácia da Gama, a mãe, nasceu no Rio de Janeiro, filha de Luís de Almeida Ramos, originário de Tarouca, Portugal e da brasileira Helena Josefa Correia da Gama. Basílio teve seis irmãos: Manoel Caetano da Costa Villas Boas da Gama, Antônio Caetano Villas Boas da Gama, Antônio Caetano de Almeida Villas Boas, João de Villas Boas, Helena e Ana.

A infância do poeta passou-se em propriedade paterna localizada, segundo a tradição, na Várzea do Cacheu, em São José, onde o pai parece ter exercido influência. Manoel da Costa Villas Boas foi Capitão de ordenança e exerceu ali os cargos de juiz ordinário e vereador. Contudo, a morte precoce dos pais trouxe dificuldades financeiras à família e Basílio foi levado ao Rio de Janeiro por um frade franciscano, para frequentar as aulas de humanidades dos Jesuítas. Outra tradição diz que o benfeitor do poeta foi o Brigadeiro José Fernandes Pinto Alpoim, que teria encaminhado Basílio ao Colégio dos Jesuítas, onde faria o noviciado. Alpoim era amigo do governador Gomes Freire de Andrade, Conde de Bobadela, que figura como o comandante das tropas portuguesas na guerra contra os jesuítas no sul do Brasil, epopeia narrada por Basílio no poema O Uraguai.

No Colégio dos Jesuítas do Rio de Janeiro Basílio permaneceu até 1759, quando O Marquês de Pombal expulsou a Companhia de Jesus dos domínios de Portugal, sob alegação de conspiração na ordem religiosa. A Companhia fundada por Inácio de Loyola desfrutava de grande poder político dentro do Estado português, e Pombal, visando o fortalecimento do poder real, que era também o próprio, declara guerra contra os jesuítas. A consequência imediata foi o fim da secular atribuição educacional da Companhia no Brasil, com o fechamento dos seus colégios. Basílio segue, então, para o Seminário São José, para prosseguir seus estudos.

De 1760 a 1767 esteve na Europa, chegando a lecionar em Seminário da cidade de Roma para custear os próprios estudos. Nesta época ingressou, sob a proteção dos jesuítas, na Arcádia Romana, assumindo o pseudônimo de Termindo Sipilio. Depois de rápida passagem pelo Rio de Janeiro em 1767, voltou, no ano seguinte, a Portugal para matricular-se na Universidade de Coimbra. Em Lisboa foi preso, acusado de inconfidência por suas ligações com os jesuítas e condenado ao degredo para Angola, na África. Outra versão (contada por Herculano Veloso) diz que o poeta foi preso ainda no Rio de Janeiro, sendo remetido a Lisboa, onde foi submetido ao temível Tribunal de Inconfidência. Na capital portuguesa, prestes a partir para o degredo, salvou-lhe a habilidade poética, por ocasião do casamento da filha do Marquês de Pombal. No "Epitalâmio às núpcias da Sra. D. Maria Amália" (1769) o poeta não poupou elogios a Pombal, caindo imediatamente nas graças de Sebastião José. No poema, pedia clemência ao Ministro ao mesmo tempo em que criticava duramente os jesuítas. Esse episódio, que sugere uma falha no caráter do poeta, revela também seu senso de oportunidade. Ele, que tanto devia aos jesuítas, de repente se tornara um admirador incondicional do maior inimigo deles, o Marquês de Pombal. A relação do poeta com os discípulos de Inácio de Loyola se deu em duas situações delicadas de sua vida: quando se aproximou e quando se afastou deles. Aproximou-se dos jesuítas para estudar, depois que se viu órfão, ainda na pré-adolescência. Mais tarde, ao ver-se na iminência do degredo, apelou para a vaidade do Marquês de Pombal, e passa a atacar impiedosamente os antigos protetores. Se a atitude é questionável, o certo é que, nas duas ocasiões, Basílio lutou com a arma que tinha: a inteligência.
 
O fato é que o “Epitalâmio” e as críticas aos jesuítas agradaram muitíssimo a Pombal e, como recompensa, Basílio escapou da condenação por jesuitismo, tornou-se favorito do Marquês, passando a viver tranquilamente na Corte portuguesa. Foi um período de grande prosperidade em que o poeta foi nomeado oficial da Secretaria do Reino, recebeu título de Fidalguia por Carta Régia e produziu sua obra prima “O Uraguai” (1769), poema épico em cinco cantos, publicado em Lisboa pela Imprensa Régia. No poema, Basílio narra a guerra empreendida em 1757 por Portugal e Espanha contra os jesuítas estabelecidos em aldeamentos indígenas no Rio Grande. O Tratado de Madri, do ano anterior, destinava os Sete Povos das Missões aos portugueses e a Colônia do Sacramento (implantada por Luiz Almeida, avô de Basílio), aos espanhóis. No poema, os jesuítas lideram os índios contra as tropas do General Gomes Freire de Andrade e de Catâneo, generais português e espanhol, respectivamente.
 
Paralelamente às suas funções na Secretaria de Estado, Basílio produzia sua obra, surgindo “A declamação trágica” (1772) e “Campos Elíseos” (1776). Em 1777 ocorre a morte do Rei D. Jose I e a coroação de D. Maria I. A animosidade da nova soberana quanto à política e à pessoa do Marques de Pombal provocou a queda do Ministro e a consequente perseguição dos seus protegidos. Basílio, apesar disso, manteve-se em seu cargo e continuou a compor sua obra, tendo produzido “Relação abreviada da República” e “Lenitivo da saudade” (1788) e “Quitúbia” (1791), além de outros poemas. Na versão veiculada por Herculano Veloso, com a queda de Pombal o poeta sanjosefense teria deixado o cargo em Lisboa e voltado ao Rio de Janeiro. Lá, fundou a Arcádia Fluminense, em parceria com o poeta Silva Alvarenga, sob os auspícios do vice-rei Luiz de Vasconcelos. No entanto, a posse do novo vice-rei, o Conde de Resende, renovou-lhe a perseguição e, diante da prisão de Silva Alvarenga, Basílio volta a Portugal onde falece a 31 de julho de 1795 em Lisboa, sendo sepultado na Igreja Nova de Belém.
 
Basílio produziu extensa obra, destruída, em parte, por ordem própria em seu leito de morte. Além da Arcádia Romana, ele integrou a Arcádia Ultramarina, fundada em 1780, à qual também pertenciam Cláudio Manuel da Costa, Frei Santa Rita Durão e Tomás Antônio Gonzaga e a já citada Arcádia Fluminense, ao lado de Silva Alvarenga. Na história da literatura portuguesa, o poeta classifica-se no arcadismo, porém, como precursor do romantismo. Ao tratar temas relacionados à natureza e ao indígena, Basílio teria antecipado em meio século a escola romântica, cujo auge ocorreria em meados do século XIX, conforme divisão cronológica estabelecida por José Veríssimo. José Basílio da Gama é patrono da Cadeira n. 4 da Academia Brasileira de Letras e honra com seu nome a Escola Estadual Basílio da Gama, criada em sua terra natal em 1922.
 
O retrato idealizado do poeta consta de selo comemorativo dos duzentos anos de seu nascimento. Herculano Veloso, através de Varnhagem, descreve sua fisionomia e estado de espírito “o ilustre poeta era mediano de corpo, de rosto trigueiro, onde brilhavam dois olhos vivos. Homem de bom trato, dotado de uma veia fecunda de anedotas".
 
Hoje, que a várzea do Cacheu, seu berço, está totalmente destruída, inclusive com o desaparecimento da lagoa que caracterizava o local, e que muitos tiradentinos sequer sabem quem foi Basílio da Gama, talvez seja o momento oportuno para mais uma homenagem ao poeta, que figura entre os maiores da língua portuguesa. Quem sabe, desta vez, a inspiração não esteja nos versos que o próprio Termindo Sipilio dedicou ao Marquês de Pombal, e que mais parece o projeto de um monumento definitivo a ele mesmo, no local em que passou seus verdes anos?

Ergue de jaspe um globo alvo e rotundo,
E em cima a estátua de um herói perfeito;
Mas não lhe lavres nome em campo estreito,
Que o seu nome enche a terra, e o mar profundo

Mostra no jaspe, artífice facundo,
Em muda história tanto ilustre feito,
Paz, justiça, abundância e firme peito,
Isto nos basta a nós, e ao nosso mundo.
Mas porque pode em século futuro,
Peregrino, que o mar de nós afasta,
Duvidar quem anima o jaspe duro;

Mostra-lhe mais Lisboa rica e vasta,
E o comércio, e em lugar remoto e escuro,
Chorando a hipocrisia. Isto lhe basta


Referências bibliográficas:

- Revista do Arquivo Público Mineiro - Ano XII
- SANTOS FILHO. Olinto Rodrigues dos. Guia da Cidade de Tiradentes. Tiradentes: IHGT, 2012.
- VELOSO, Herculano. Ligeiras Memórias sobre a Vila de São José nos tempos coloniais. Belo Horizonte: 1955.
- Casa do Bruxo
- Poetas Livres