28.9.13

30 de setembro de 1848 – a queda de uma vila

         
   “Não se pode dizer de Ouro Preto que seja uma cidade morta. 
Morta é São José Del-Rei” (Manuel Bandeira – 1938).


Dizer que a cidade de Tiradentes, antiga São José d’El-Rei é um dos núcleos urbanos setecentistas mais preservados do país é repetir o obvio, afinal, basta observá-la para constatar que se manteve praticamente inalterada ao longo desses três séculos de história. Permanece, em linhas gerais, o traçado original das ruas, becos e praças do núcleo histórico. Mantêm-se intactos os principais prédios da arquitetura civil e religiosa, com destaque para a Matriz de Santo Antônio e o Chafariz de São José.  Manteve-se relativamente preservado - até recentemente (hoje nem tanto) - o entorno que compõe harmonicamente o conjunto dominado pela Serra de São José. Por outro lado, sabe-se que a cidade preservou-se graças ao empobrecimento. À depressão econômica resultante da exaustão da atividade mineradora, no final do século XVIII, seguiu-se longo período de estagnação econômica, que acabou por preservar a estrutura da primitiva vila. Foi assim durante todo o século XIX e parte do XX e, nesse ínterim, ocorreu o fato dramático da perda da autonomia política em 1848.

A Vila de São José, criada a 19 de janeiro de 1718, é originária do acampamento de garimpeiros resultante das descobertas de João de Siqueira Afonso em 1702. Formou-se imediatamente o Arraial de Santo Antônio do Rio das Mortes, com intensa imigração. Instalada, a vila experimentou rápido crescimento econômico e territorial, chegando a fazer divisa com a Capitania de Goiás. No auge, o ouro farto, facilmente colhido à flor da terra, propiciava ruas movimentadas e uma intensa atividade econômica, social e cultural. Templos magníficos, dominando o conjunto de vetustas casas senhoriais, manteriam para a posteridade uma amostra da riqueza fácil da terra. 

Nos bons tempos, São José chegou a rivalizar, e com vantagem, a futura “Princesa do Oeste”. Em 1729, por exemplo, enquanto a Câmara de São João devia a Portugal, a título de donativo real, 5.452 oitavas de ouro, a Câmara São José estava obrigada a algo em torno de 8.609 oitavas, o que refletia, certamente, seu maior cabedal. Naquele mesmo ano, São José contabilizava, a mais que São João, 1971 escravos e 57 vendas, dentre outros indicadores. A rivalidade entre as duas vilas começara em 1718, quando a Câmara de São João protestou a El Rei D. João V contra a criação da Vila de São José, iniciando-se, então, uma polêmica questão de limites entre as duas vilas, que persiste ainda em nossos dias. 

O esgotamento do ouro de aluvião e a dificuldade para a exploração do ouro em profundidade trouxeram a crise, agravada pela sequência de emancipações de distritos como São Bento do Tamanduá (Itapecerica) em 1789 e Igreja Nova (Barbacena) em 1791, dentre outros. Na sede da vila a decadência foi mais sentida. À estagnação econômica seguiu-se o esvaziamento populacional e a decrepitude do casario gradativamente abandonado e até demolido para a venda do material destinado a novas construções em São João Del-Rei. A extração do ouro, que na década de 1750 ultrapassara as 100 arrobas, caiu para 86 na década seguinte e para 68, na década de 70. Ocorreu, então, a migração de mineradores e escravos para as fazendas de café do vale do Paraíba. Os que ficaram dedicavam-se a atividades de subsistência, à agropecuária caseira, e a tímidas iniciativas empresariais, como tecelagem, cerâmica e ourivesaria. O primeiro censo oficial da Província de Minas, em 1831, encontraria em São José uma população de apenas 3055 pessoas. Era a decadência, num ritmo gradativo e constante.

O aspecto de abandono da Vila, em contraposição ao seu passado glorioso, foi destacado por todos os visitantes ilustres do século XIX. De maneira geral, todos apontaram para uma situação de crise. Já em 1818 Johann Emanuel Pohl fala de muitas minas abandonadas e conta, na vila, apenas 500 casas. Auguste de Saint Hilaire, no mesmo ano, viu muitas escavações, mas constatou que a mineração ali já era atividade encerrada. Na década seguinte, o Reverendo Walsh registra um momento de efêmera reação econômica, com a chegada dos ingleses da General Mining Association, que logo desistiram. O inglês Richard Burton, na década de 1860, contou, na vila, cerca de 300 casas e uma população de 2500 pessoas, na maioria desocupadas, que só faziam jogar peteca e comer jacuba. O mato crescia nas ruas desertas e o aspecto de abandono da cidade impressionaria, em 1893, a Olavo Bilac. O poeta, invadido por “uma melancolia súbita”, passou pela Praça do Chafariz, atravessou a velha cidade “amortalhada num silêncio de cemitério”, visitou a fantasmagórica Matriz de Santo Antônio e partiu de Maria Fumaça, meio incrédulo, refletindo a respeito da vila morta.

Um dia para não se esquecer foi 30 de setembro de 1848, quando a Lei provincial nº. 360 suprimiu a autonomia política da Vila de São José, integrando seu território à São João del-Rei. Humilhação extrema, que durou quase um ano, mas foi revogada por força de mobilização popular. A restauração da vila veio pela Lei 752 de 20 de outubro de 1849, fato, porém, que não alterou a realidade decadente de São José. Situação que ainda duraria mais de um século, até a cidade ser resgatada dos escombros para a exploração de sua nova riqueza: o turismo.

Texto do sócio Rogério Paiva,
Sessão de 15 de setembro (efeméride de setembro)

6.9.13

Presépios Antigos



Uma tradição quase perdida


          A tradição de montagem de representação do nascimento de Cristo vem da Idade Média e é atribuído a São Francisco de Assis ou aos Franciscanos. Ainda hoje é tradição a montagem dos presépios nas igrejas franciscanas, e em todo o mundo católico. Parece que inicialmente foi montado um presépio vivo, com atores trajando  vestes bíblicas e animais vivos. Posteriormente passou-se a ser feito com figuras esculpidas nos mais diversos materiais e formas, com um rancho onde se colocava a manjedoura, ou ainda uma gruta ou às vezes ruínas clássicas do renascimento italiano. Mas foi no século XVII e XVIII, que se disseminou os presépios grandes, a exemplo dos ditos “napolitanos”, em que as figuras geralmente eram vestidas com tecidos naturais ricos, como brocados. O presépio napolitano, além da cena central bíblica, incluía cenas diversas do cotidiano, onde os personagens usavam vestes contemporâneas, da época da confecção. A tradição dos presépios passa para a Espanha e Portugal e também para suas colônias. Em Portugal foi muito comum o uso de presépios de terracota, com grande número de figuras e presépios colocados em maquinetas envidraçadas. Daquele tipo, os mais espetaculares, são os confeccionados pelo escultor Joaquim Machado de Castro (1731-1822) para a Sé de Lisboa (1766) e o da Basílica do Sagrado Coração de Jesus da Estrela, de grandes proporções, com mais de 500 peças em magnífica caixa dourada. Outros presépios de menores proporções de uso privado, também foram comuns em Portugal e suas colônias.


Presépio da Basílica da Estrela, Lisboa.

Presépio da Sé de Lisboa, 1766.

             Em Minas antigamente existiam muitos presépios neste tipo de maquineta, como os dois expostos no Museu da Inconfidência e o da igreja do Amparo de Diamantina, doado à igreja em 1797. Magnífico seria o presépio feito pelo Aleijadinho (1738-1814) para a igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Ouro Preto, por volta de 1790, do qual só restam quatro peças secundárias, hoje no Museu da Inconfidência. Os presépios com grande número de peças soltas só montados na ocasião do natal se perderam em sua maioria. Ainda existem alguns presépios com grande número de peças como de uma família Viegas, de São João Del Rei, hoje exposto no Museu de Arte Sacra. A família o atribui a Joaquim Francisco de Assis Pereira, mas as figuras principais parecem ser de origem setecentista.



Presépio da Igreja do Amparo - Diamantina, 1797.
Presépio do Museu da Inconfidência, séc. XVIII.












São José e Nossa Senhora, imagens de presépio
do Palácio do Bispo de Diamantina, séc. XVIII.




Figuras de presépio de autoria de Aleijadinho, proveniente da Igreja de S. 
Francisco de Assis, cerca de 1790, Museu da Inconfidência, Ouro Preto.


            Tradição quase desaparecida em Minas Gerais e principalmente na nossa Tiradentes é a armação de presépios nas casas nas vésperas do natal até o dia de Reis (6 de janeiro) segundo uns ou até o dia  de Nossa Senhora das Candeias (2 de fevereiro) segundo outros. Na minha casa sempre se desmontou o presépio no dia de Nossa Senhora das Candeias, quando termina o ciclo natalino.

           Mas o que eu quero comentar são os presépios antigos que havia na nossa cidade de Tiradentes, que com o tempo desapareceram. Um dos mais curiosos e incrementados era o da Conceição Lopes, que morava com sua irmã paralítica de nome Belica, na rua de cima ou Padre Toledo número 106.  Esse presépio, cujas peças ou figuras não tinha muita importância, primava pela montagem, com grande quantidade de casinhas de papelão, madeira, barro, tronco de piteira ou sei lá o que. Eram coloridas e encantavam as crianças. Havia muitas bonecas, daquelas de papelão ou papel machê, vestidas de anjo.Tinham também serras e cachoeiras. Só restou atualmente desse presépio o curral ou quiosque onde se colocava a manjedoura com o Menino Jesus. É muito bem acabado com telhado em quatro águas e todo pintado de azul.

Presépio de Conceição Lopes, foto de João B. Ramalho, déc. de 1930.


        Outro presépio de estrutura curiosa era o de Antônio Ferreira Gomes, o Antônio fogueteiro. As imagens ou figuras foram confeccionadas por ele mesmo em barro cozido, sendo que, algumas peças, não chegaram a ser cozidas. Para as peças principais como Nossa Senhora com o Menino, os reis magos, os camelos e outros ele usou como modelos as peças do presépio de Maria José Veloso (falecida em1946) que era montado em sua casa à Rua Padre Toledo. Era um presépio setecentista. Outras peças foram por ele acrescentadas, em outro estilo mais próximo da época em que viveu como o pescador de calça arregaçada e chapéu; o flautista cego, também vestido à moda novecentista, a paralítica, inspirada em uma pessoa local, o pedidor de esmola com pires na mão. História curiosa é do São José que era criação dele. Segundo o que ele me disse o herdeiro do presépio de (Sá Cota) Antônio Veloso, não quis emprestar-lhe a peça para copiar e ele teve que fazê-la de Memória e nunca chegou a queimá-la e policromá-la. Outra curiosidade é que, passando um visitante pela cidade, viu seu presépio montado e quis comprá-lo. Ele não quis vendê-lo, mas para não deixar o pretendente à compra, frustrado vendeu-lhe apenas os três reis magos, deixando para trás os seus camelos e pajens. Portanto não conhecemos o presépio com os reis magos.


Presépio de Maria José Veloso (Sá Cota Veloso), com a Antônio
Bento Veloso sentado à frente. Acervo do IPHAN, déc. de 1950.


           A armação do presépio era outro capítulo da história. Era sempre montado muito próximo ao Natal; ou em certos anos chegou até ser montado depois do dia 25 de dezembro, mas antes do dia 06 de janeiro, para o “Dia de Reis”; tamanha era a pachorra e lentidão do bom Antônio Gomes (1895-1978), que também era o autor do Judas, que se queimava no sábado de Aleluia. Era montado na sala, na parede fronteira à fachada de sua casa situada à Rua Direita número 111, em estrado com tábuas velhas e ripas nos cantos, para sustentar a abóboda celeste, feita em um pano azul com estrelas de papel prateado; nas laterais eram colocados os ramos de “guamerin”, uma planta semelhante à murta européia, cuja semente é em forma de bolinhas vermelhas que dá na época do Natal. No fundo era colocada a “serra” confeccionada com saco de amiagem, onde ele passava grude de polvilho e salpicava uma mistura de areia branca, carvão e outros pigmentos, que ele socava em um grande almofariz de ferro de sua foguetaria. Por fim era colocada uma “vista” de Belém de Judá, pintada em tela por ele mesmo, baseada em ilustrações da história sagrada. Para montar a “serra” ele colocava uma armação com caixilhos velhos de vidraças e outros objetos. Finalmente colocava-se areia quartzita branca da serra, fazendo o piso; e os musgos, bromélias, pequenas  orquídeas  e plantas típicas de campos rupestres. Então eram colocadas as figuras distribuídas com cuidado, a paralítica sempre ficava mais alta, na “serra”. Ainda havia o laguinho feito de espelho e arroz plantado em latinhas para fazer uma vegetação mais verde. Certa vez minha mãe encomendou a ele um presépio; que ele prometeu fazer, mas durante muitos anos ficou só na promessa, até que ele entregou a primeira peça, um pescador, que ainda conservo até hoje. Após sua morte, em 1978 a viúva e os herdeiros venderam o presépio a Yves Gomes Ferreira  Alves, que o manteve em casa. Durante alguns anos ele me foi emprestado, para eu montá-lo na Matriz, na igreja do Bom Jesus e no Passinho do Jardim (Largo das Forras). Após a morte de Yves  e de sua mulher Dalma, os filhos o doaram ao Centro Cultural, que o vem montando, mas de maneira mais simples. Infelizmente parece que algumas peças se perderam, como a paralítica. Este presépio deve ser conservado como um patrimônio da cidade de Tiradentes e faz parte do imaginário da população mais velha.


Presépio de Antônio Ferreira Gomes, acervo IPHAN, 1954.

Presépio de Antônio Gomes montado em 2012 no Centro Cultural Yves Alves.

            O mais espetacular presépio era o de Maria José Veloso a “Sá Cota”, que passou por herança a Antônio Veloso, que morava na Rua Padre Toledo nº 23, próximo à Matriz. Como a casa de Antônio Veloso era muito pequena, raramente o presépio era montado inteiro, mas o ano todo ele ficava em uma “redoma” ou caixa envidraçada, na sala de sua casa. Ficavam expostas apenas as peças principais, como Maria, José e o Menino Jesus. Tratava-se de um presépio do século XVIII, em terracota, com as figuras maiores, possivelmente de origem portuguesa, de extrema qualidade plástica, e baseado nos presépios portugueses, como os de Machado de Castro na Sé de Lisboa e na Basílica da Estrela.  Além da Virgem com o menino no regaço, São José, os reis magos; havia pajens, grupos de camelos e outras figuras. Foi realmente uma perda para a cidade, a sua venda. Após a morte de Antônio Veloso, que era zelador da Matriz e acertava o relógio da torre, o presépio ficou com um de seus filhos, que o levou para Lavras- MG e o vendeu ao médico pesquisador e colecionador Eduardo Etzel (1906-2003), que publicou a foto da Virgem com o Menino e São José no seu livro “Imagem Sacra Brasileira” São Paulo, Edição Melhoramentos/ Ed. da USP, 1979, página 130, com a legenda dizendo que “pertenceu à antiga igreja de Tiradentes”, o que não é correto, pois ele sempre pertenceu à família Veloso. A essa altura o Etzel já o havia vendido ao museu de presépios de São Paulo. Com a extinção deste museu, as peças passaram para a propriedade do Museu de Arte Sacra de São Paulo; onde atualmente se encontra.

Figuras do Presépio de Maria José Veloso expostas por
ocasião da mostra "Brasil 500 Anos", em SP. Acervo
do Museu de Arte Sacra de SP, foto do catálogo
"Arte Barroca: mostra do descobrimento".
         
           No ano de 2000 as peças principais do presépio de “Sá Cota Veloso”, foram expostas na “Mostra do Redescobrimento 500 anos de Artes Visuais Brasil”, no Parque do Ibirapuera, Módulo da Arte Barroca, organizado por Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, em cenário de Bia Lessa. Fotografias das peças foram publicadas no catálogo da exposição, página 249.

            Há ainda que  se dizer que a Virgem mantém o seu diadema original de prata com estrelas e o São José, o seu resplendor de prata com uma pedra e raios ondulados, datável da primeira metade do século XVIII.

             Muitos anos após a venda do presépio, Yves Alves, indagando ao antigo proprietário, sobre ele, descobriu dois ou três fragmentos de peças de terracota do presépio que não foram na venda, e ele os adquiriu, tendo eles permanecido em sua casa, até sua morte. Certa vez os expomos na Capela do Bom Jesus da Pobreza, em exposição sobre o Natal. Para ter-se uma ideia do seu tamanho, a Virgem com o Menino mede 25 cm e o São José 35 cm de altura.

             Outros presépios antigos existiam na cidade de Tiradentes, dos quais não se tem notícia. O de Ernestina dos Reis, também ficava em caixa de vidro; segundo ela nos disse, mas não chegamos a vê-lo.

Figuras de Presépio de Maria José Veloso, ainda no Museu de
Presépios de SP. Foto do livro "Imagem Sacra Brasileira",
 de Eduardo Etzel, 1979.
           
            Outra pessoa da família Veloso, a figura folclórica de “Maria do Gato”, irmã de Antônio Veloso, proprietário do presépio, mantinha montado em sua casa, onde hoje é a padaria Padre Toledo, um presépio cheio de bonecas e de gatos vivos; e se auto- intitulava “Maria do Presépio”. Na casa de Antônio Sotero da Costa, o “Antônio Lourenço”, montava-se um belo presépio, por ocasião do natal. Ele tinha uma única peça de autoria de Antônio Gomes. Conta-se também, que em casa de Antônio de Pádua Falcão, na Rua da Câmara nº 78 montava-se um belo presépio, que era aberto ao público, isso no início do século XX.


Texto do sócio Olinto Rodrigues dos Santos Filho.