29.12.23

A Capela do bom Jesus de Matosinhos de Lagoa Dourada


O culto ao Senhor de Matosinhos nasceu em um mosteiro medieval nas proximidades da cidade do Porto, em Portugal, o antigo mosteiro de Bouças. Do mosteiro de Bouças a imagem milagrosa do Bom Jesus, datável do século XIII ou XIV, foi transladada daquela igreja para a Matriz do Senhor de Matosinhos em 1733, quando se realizou grandes festas, tornando-se um santuário marítimo, por estar próximo ao porto atlântico de Matosinhos.




Segundo uma antiga lenda, a milagrosa imagem teria sido esculpida por Nicodemos e, depois de várias peripécias, teria vindo parar na praia de Matosinhos em uma embarcação sem tripulação. A imagem foi recolhida faltando um braço e, algum tempo depois, uma menina, ao fazer uma fogueira, viu que um lenho não queimava, indo verificar, constatou-se tratar do braço da milagrosa imagem e a ela foi integrado. No local do aparecimento da imagem foi erguido um padrão em memória do milagroso fato.






A Matriz do Senhor de Matosinhos tornou-se um santuário de grande importância, como o atesta a sua coleção de ex-votos. Muitos dos portugueses que rumavam para o Brasil pediam a proteção do Senhor de Matosinhos e muitos desses vieram para Minas Gerais, onde o culto e a devoção dessa invocação tiveram grande incentivo. Em Salvador, ao que consta, apenas uma igreja na Bahia foi dedicada ao Senhor de Matosinhos, enquanto Minas conta com várias igrejas e capelas, como as de Congonhas do Campo, Bacalhau (distrito da cidade de Piranga), Ouro Preto, Serro, São João del-Rei, a cidade de Matosinhos, Conceição do Mato Dentro entre outras.








No século XVIII, a igreja do Senhor de Matozinhos passou por grandes reformas seguindo a arquitetura de Nicolau Nazoni e com um belo conjunto de talha barroca, além da construção de capela de Passos no adro daquele santuário. Como trata-se de uma imagem de Cristo medieval, ele é representado com os pés pregados na cruz separados. Veste um perizônio longo, chegando até quase os pés, tendo os braços em ângulo reto e apresenta-se agonizando, com um olho aberto e o outro fechado, olhando para o céu e para a terra.

Em Minas, o mais famoso santuário do Senhor de Matozinhos, é claro, localiza-se no Monte Maranhão, em Congonhas do Campo, à época pertencente à comarca do Rio das Mortes. A Capela do Bom Jesus de Matozinhos, do Arraial da Lagoa Dourada, deve sua instituição ao português Manuel Ribeiro dos Santos, que ergueu uma primitiva capela na margem do caminho entre o arraial e as vilas de São João e São José, por volta de 1750.





Manuel era natural da freguesia de São Tiago da Ribeira das Fraguas do Bispado de Coimbra, tinha 63 anos de idade em 1777 e vivia de mineração. Além da ermida construída de madeira, possivelmente de taipa de mão ou pau-a-pique, Manuel Ribeiro construiu umas casas por volta de 1770 para servir a capela, sendo habitadas por ele próprio como protetor e admirador da capela, servindo para o capelão, para alugarem em favor da capela e casa para os romeiros, que lá iam por ocasião da festa. Essa casa foi doada ao patrimônio da capela em 1776 e isso gerou um curioso documento guardado na cúria de Mariana, no qual o doador foi contestado, tendo que provar a posse do referido imóvel. O documento nos revela que havia uma casa para o Capelão e para os Romeiros, conforme referido acima. Em 1824, em visita do bispo de Mariana, Dom Frei José da Santíssima Trindade, à paróquia de Prados anotou-se a existência de uma segunda capela no arraial da Lagoa Dourada: “Neste Arraial tem outra capela do Senhor Bom Jesus de Matozinhos, fabricada de madeira, mas com decência e com a mesma paramentada para o sacrifício”. Este documento indica que a capela continuava sendo de pau-a-pique como no século anterior. 







Vamos ter nova notícia sobre a capela do Bom Jesus no livro de Capelas e Tombos da Vila de São José del Rei, em data de 1854, quando o tabelião da Vila de S. José registra o inventário de bens da Capela do Bom Jesus, onde constam as imagens do Senhor Jesus Cristo Crucificado grande,  a imagem de Santa Madalena, a imagem da Senhora ao lado da cruz, a imagem de São João Evangelista, a imagem de Nossa Senhora da Conceição, a imagem de São Sebastiao, além de dois castiçais de madeira dourada, seis castiçais grandes de madeira dourada, um crucifixo, um missal, uma estante, uma campainha, um par de galhetas e purificador de prata. Constam ainda no inventário “um caixão grande com seis gavetas”, o que certamente se refere a um arcaz como era chamado à época, indicando que existia uma sacristia onde se localizava tal móvel e sobre ele um oratório com a imagem de Cristo Crucificado.  Contam ainda um cálice de prata com seus pertences que seriam a patena e a colherzinha, assim como um jarro e bacia de lavatório de estanho e alguns paramentos. Como a reconstrução do século XX não contém sacristia, pensamos que o arcaz foi vendido e pode ser o que está hoje na Sala dos arcazes do Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro, devidamente identificado como de Lagoa Dourada. 

No final do século XIX ou início do século XX, a capela parecia estar em ruínas e a decisão foi demoli-la para fazer um novo prédio. Em 1905 foi efetivada a demolição e as imagens foram guardadas na igreja Matriz e só no dia 4 de setembro de 1909 foi benzida a pedra fundamental da nova Capela, embora a obra somente tenha começado em 1911, indo terminar em agosto de 1920, sendo benzida no dia 30 de agosto pelo vigário Antônio Maurício de Medeiros Gouvêa. 


  


Na década de 1940 foi feita nova reforma do prédio, executada uma pintura de forma nas paredes. A nova construção não seguiu o esquema tradicional da arquitetura religiosa setencentista, mas inclinou-se para o ecletismo. Consistiu em nave única, sem separação de capela-mor e sem a sacristia, descrevendo um retângulo, com a fachada principal mais elaborada em frontal curvo, relevos e três janelas onde se inseriu o sino posteriormente. Internamente, apenas um salão, com coro alto acessado por escada em caracol, além da porta principal, duas transversais com detalhe artístico sobre elas. Nos fundos, há um cômodo sob o camarim, hoje funcionando como sacristia. 




O que na verdade destaca a capela na história artística região e de Minas Gerais é o grande e belo retábulo de estilo D. João V em talha policromada, que um dia pode ter sido dourado. É peça de grande qualidade artística, embora tenha sido muito mal tratada por repinturas grosseiras. As imagens de grande porte do calvário talvez sejam o grande legado artístico de Lagoa Dourada, algo incomum na região. 

A restauração artística do retábulo e das imagens, além do arranjo arquitetônico atual, valorizou sobremaneira a peça, colocando-a em destaque. Chego a cogitar que este retábulo tenha pertencido à antiga Matriz, pela excelência de sua talha em comparação com os quatro retábulos da nave colocados na matriz atual. Ganhou a capela não só com a remodelação da área do presbitério, com a criação de um arco, como na retirada de tirantes e a instalação de sacristia transversal, embora exígua. Quando se fez a nova capela, o retábulo ficou estreito para a largura da nave e se fez uma complementação de madeira com pinturas, que agora foi retirada, dando a peça a originalidade ancestral. Que fique para as próximas gerações não só o culto ao Senhor de Matozinhos, mas a sua casa dignamente conservada.