29.11.12

Por onde anda o Caboclo D'água?



Em Tiradentes, assim como em toda cidadezinha interiorana, a infância da maioria das pessoas que viveram a era pré internet era povoada de histórias, mitos e lendas. Recentemente, o Instituto Histórico e Geográfico publicou uma coletânea de lendas reunidas em 1978 e que tem feito muito sucesso principalmente entre a criançada da era digital. Interessam-lhes os “causos” contados por nossos avós e que se referem a uma cidade que não existe mais, a um tempo em que a crendice e a ingenuidade permitia o diálogo do real com o fantástico. Sonhar era permitido.

Não há muito tempo (entenda-se década de oitenta para trás) era comum uma roda de conversa à noite, na porta da casa, em que os mais velhos contavam histórias para uma plateia de meninos invariavelmente curiosos e amedrontados. Eram histórias dos tempos em que a cidade ainda era uma ruína colonial, sem energia elétrica e sem movimento. Meia noite era, citando Edgar Allan Poe, “a hora que apavora” e todos se recolhiam cedo; dormiam com as galinhas para acordar com elas. Caída a penumbra da noite eram os seres fantásticos  que perambulavam pelas ruas, além de um ou outro aventureiro desavisado. Conviviam pacificamente, a lenda e a realidade. Daí surgiram inúmeros “causos apavorantes”, alguns deles registrados na coletânea do IHGT. 

Um história do conhecimento dos antigos e que está quase caindo no esquecimento é a do caboclo d'água da viturina.  Segundo a versão que conheço, tratava-se de uma figura extravagante, meio humana meio bicho, tal como um homem das cavernas, que vivia nas margens do Rio das  Mortes, no local conhecido por viturina. Era visto por pescadores e banhistas que frequentavam o local. As vezes estava sentado em cima de uma pedra, no meio do rio, outras vezes caminhava displicentemente pela várzea, na região da lagoa do cacheu. Parecia não se importar muito com a presença das pessoas, e não há registros de que tenha atacado alguém. Deixava-se contemplar e depois mergulhava nas águas do rio...

Nesses novos tempos, meia noite já não apavora tanto e a criançada já não brinca mais nas ruas e nem visita a viturina, antigo local de banho. Pescadores também estão escassos, já que o peixe é facilmente comprado no mercado e o Caboclo d'água, certamente sentindo-se abandonado, num dos mergulhos no Rio das Mortes, desapareceu para sempre. 

Outra hipótese é a de que o caboclo foi vítima da tecnologia. A cidade, em uma nova era das “vacas gordas”, está sentada diante da televisão ou do computador e os velhos já não têm mais meninos curiosos e amedrontados para ouvir-lhes as histórias. Os garotos estão em alguma lan-house, certamente. 

Brincadeiras a parte, o que revolta mesmo é a destruição do habitat do caboclo d´'água. O crescimento desordenado da cidade em função de uma economia em ascensão espalhou o bicho-homem por todos os lados, expulsando os seres fantásticos.  O local da lagoa do cacheu, em que nasceu o poeta Basílio da Gama, e em que “vivia” o nosso caboclo d'água, por exemplo, sofreu a ação de tratores que devastaram a região, inclusive entupindo a lagoa. O projeto é a construção de um loteamento. Quem sabe não arranjam um lote para o Caboclo d'água?

Rogério Paiva, Sócio e arquivista do IHGT.

19.11.12

Dia da Liberdade: um novo esquartejamento do herói?



Nascido em 1746, na Fazenda do Pombal, então território da Vila de São José Del-Rei, Joaquim José da Silva Xavier, foi batizado a 12 de novembro do mesmo ano, em capela pertencente à Paróquia de Nossa Senhora do Pilar, de São João Del-Rei, conforme registro eclesiástico:

Aos doze dias do mês de novembro de mil setecentos e quarenta e seis anos, na Capela de São Sebastião do Rio Abaixo, o Reverendo Padre João Gonçalves Chaves, capelão da dita Capela, batizou e pôs os Santos Óleos a Joaquim, filho legítimo de Domingos da Silva dos Santos e de Antônia da Encarnação Xavier; foi padrinho Sebastião Ferreira Leytão e não teve madrinha; do que fiz este assento. O Coadjutor Jeronymo da Fonseca Alvarez”.

Em 1788, já Alferes da Tropa Paga da Capitania de Minas Gerais,  Joaquim José envolveu-se na Conjuração Mineira, sendo preso em 1789. Ficou confinado e incomunicável por mais de três anos na fortaleza da Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro. Em 1792 a sentença do tribunal de alçada condenou à morte na forca os dez principais envolvidos na conspiração. A duvidosa clemência da Rainha de Portugal, D. Maria I, comutou a pena de todos a degredo perpétuo ou por dez anos. Dos condenados, o único que não mereceu o perdão real foi o Alferes Tiradentes. Foi enforcado, no dia 21 de abril, no Rio de Janeiro. Para maior terror da população e para servir de exemplo aos que ousassem sonhar com a liberdade, seu corpo foi esquartejado em cinco partes e distribuído pelo caminho do Rio de Janeiro a Ouro Preto, ficando uma parte exposta em cada localidade onde ele pregara ideais revolucionários. A cabeça do Mártir ficou exposta em alto poste na atual Praça Tiradentes, em Ouro Preto, “até que o tempo a consumisse”. O tempo a consumiu, e passaram-se cem anos de pesado silêncio em torno do nome do Alferes. 

Na campanha republicana e em especial no ano de 1889 ressurge a figura do Tiradentes: cabelos longos e barba crescida, resgatado como protomártir da independência e como símbolo maior do regime que então se instalava. Monumentos foram erguidos por toda parte em sua homenagem. Sua famosa alcunha foi dada como denominação à sua terra natal. Em 1950, a Lei 1.266 declara feriado nacional o dia 21 de abril, data da execução do Patrono Cívico da Nação e Patrono das polícias militares estaduais.

Corre o tempo novamente até que, em 2011, a Lei 19.439, do Estado de Minas Gerais, cria o Dia da Liberdade, a ser comemorado no dia em que se deu o batizado do menino Joaquim José. Esta Lei diz no Art.2º Parágrafo único, que “os eventos terão como referência Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, e serão realizados na região onde nasceu e viveu o Mártir da Inconfidência, em especial no Município de São João del-Rei”. 

Ato contínuo, foi instituída a Comenda da Liberdade e Cidadania, pelo Decreto Conjunto nº 001/2011 dos municípios de Ritápolis, São João Del-Rei e Tiradentes,  para condecorar cidadãos de destaque da sociedade.

Surge, então, a questão: onde comemorar o Dia da Liberdade? Na Fazenda do Pombal, certamente. Quem organizará a festa, já que a posse histórica do local é alvo de polêmica  centenária e ainda não resolvida? A solução, apesar de bem intencionada, revelou-se pouco original: esquartejaram novamente o Tiradentes. Ou seja, a comemoração se dará a cada ano a cargo de uma das três localidades. Não podendo pertencer pacificamente a uma única cidade, o Alferes foi distribuído, generosamente, entre as três. 

Se a data a comemorar será o batizado, o foco dos discursos, certamente, será o suplício do Herói. Estará montado mais uma vez o cadafalso? Como no passado, também ao som de bandas de música, na presença de autoridades civis, militares e eclesiásticas, a ocasião será para discursos inflamados. Personalidades a oferecerem suas lapelas para a honrosa condecoração. Faltará, todavia, a voz “atroada” do Mártir interrompida para sempre no final do século XVIII entre uma ou outra palavra de uma piedosa oração. Falarão por ele os condecorados... Todos eles saberão, de fato, quem foi o Alferes? Lamentável será para a memória do Herói máximo da nação brasileira se a homenagem vier a tornar-se instrumento de barganha política, de agrado aos “amigos” ou de exibicionismo narcisístico revestido de oratória vazia. 

Depois da tentativa frustrada de entidades sanjoanenses em obterem, nos tribunais, um registro civil tardio (e sanjoanense) para o Tiradentes, a criação do Dia da Liberdade e a instituição da Comenda da Liberdade e Cidadania sugerem um  interessante “acordo de cavalheiros” entre as três municipalidades. O aparente consenso resultou, porém, em associação curiosa, com ares de déjà vu. A história se repetiu? Cumpriu-se mais uma vez parte da sentença imposta por D. Maria I? Materializou-se o temor do historiador Yves Ferreira Alves, que escreveu, há exatos 20 anos o artigo “Pelo amor de Deus, não esquartejem o Tiradentes outra vez”?

O próprio Tiradentes disse que “armaria uma teia que nem em cem anos se desfaria”, e de fato conseguiu.


Rogério Paiva – Sócio do IHGT 
(Comunicação em reunião do IHGT no dia 18 de novembro de 2012)