21.4.22

Minas e o ‘Mundo’: A Inconfidência Mineira e o Republicanismo

 

Os ideais republicanos da Inconfidência ‘ontem’ e ‘hoje’¹

 

sócio David I. Nascimento


Com certa frequência nos atentamos à democracia como fator único, primordial, para a política. Em casos como esses, focamos em certa crença de que a reunião em “assembleia” durante uma eleição, votar em certos candidatos que assumirão a representação popular, seria suficiente para resolver os problemas da sociedade. De um modo geral, embora a Democracia deva ser constantemente defendida (e repudiados quaisquer ataques que visem diminuir a participação popular na escolha de políticos e partidos), é preciso salientar que existem outros elementos que também deveriam ser considerados por todos nós, em especial a ideia de República.

Desde a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, o Brasil sofreu mudanças significativas norteadas pela questão republicana, sendo uma delas as duas alterações do seu nome e, depois, seis mudanças constitucionais. Após 1889, o país adotou como nome “Estados Unidos do Brasil”, uma clara referência ao país norte americano. Só posteriormente, em 1967, durante a ditadura militar, adotou-se o nome “República Federativa do Brasil”. Quanto às constituições republicanas, instituídas a partir de 1891, dois anos após a Proclamação da República e fim do governo provisório, cada uma delas marca a tentativa de fundar ou refundar a república:

Primeira República, de 1891 a 1934; Segunda República, de 1934 a 1937; Terceira República, de 1937 a 1946; Quarta República, de 1946 a 1967; Quinta República, de 1967 a 1988; Sexta República, a partir de 1988.

 

Por tantas ligações com a temática, caberia observar que a questão republicana seria bem mais antiga que as primeiras repúblicas americanas, remontando a influências greco-romanas, e tendo como um dos principais nomes o romano Marco Túlio Cícero (106 – 43 a.C.). Cícero, eleito cônsul romano, viveu em Roma durante seu período republicano (509 – 27 a.C.), tendo ele próprio escrito sobre a república e sobre os necessários desprendimentos e virtude política em favor da pátria.

Retornando ao contexto brasileiro, mais especificamente ao período do Brasil colônia, o republicanismo foi tema de discussões de um dos principais movimentos políticos ocorridos no país, a saber, a Inconfidência Mineira. Embora este seja um tema presente nos livros de História das escolas, a amplitude da Inconfidência, seu simbolismo, bem como os elementos que possibilitaram a trama dos participantes continua sendo fonte para importantes e necessárias pesquisas. Dão indício, sobretudo, sobre os primeiros elementos filosóficos de uma corrente política e aquilo que deles foi extraído e compreendido.

Com a queda da produção aurífera (e o endividamento dos mineradores e contratadores), a “administração” portuguesa havia planejado instaurar a Derrama. Para parte da administração portuguesa, incluindo o então governador da Capitania das Minas entre os anos de 1783-1788, D. Luís da Cunha Meneses, a razão para a queda da arrecadação dos impostos não seria a queda da produção, mas, sim, o contrabando feito pelos mineradores. Então, em 1788, Martinho de Melo e Castro envia para a Capitania das Minas um novo governador, o Visconde de Barbacena, Luís António Furtado de Castro do Rio de Mendonça e Faro, que, além de substituir Cunha Meneses, deveria proceder com a cobrança da Derrama: cujo valor estimado era de 538 arrobas de ouro (cerca de 7.900 Kg).

Portanto, as condições econômicas das Vilas e Arraiais da Capitania de Minas viam-se marcadas duplamente pela questão aurífera: em primeiro lugar, muitas das vilas tinham surgido em decorrência do processo de mineração. Esse foi o caso, por exemplo, da Vila de São José del Rei, cujo ouro de aluvião encontrado em seu território foi responsável pelo rápido desenvolvimento de seu Termo, tendo a Vila possuído um considerável território, no qual eram encontrados vários arraiais. Posteriormente, o exaurimento das minas de ouro foi fator principal das constantes mudanças nas cobranças dos impostos pela Coroa. Assim sendo, a imposição da cobrança da Derrama era vislumbrada pelos mineradores e outros moradores da capitania como muito provável. Por isso, um grupo específico dentro da Capitania passou a discutir um outro destino para Minas que não fosse aquele, o de produtor da riqueza que alavancava Portugal enquanto matinha os produtores em endividamento e sob constante medo: fosse medo das cobranças, fosse medo pelas das ações diretas dos governadores enviados para a colônia, como seria o caso de D. Luís da Cunha Meneses.

De tal modo, junto do ouro (mas longe das casas de fundição) “fundiram-se” tanto o desenvolvimento da Capitania como, também, algumas das ideias revolucionárias. Como exemplo destas ideias, ainda em decorrência do crescimento econômico, foi possível que alguns produtores enviassem seus filhos para Portugal, Inglaterra e França, onde puderam estudar e compreender melhor o lugar possível das Minas em relação à Metrópole. Esse foi um dos pontos que se encontravam discutidos pelos inconfidentes: a Capitania das Minas seria autossustentável, produzia muito mais riquezas do que consumia. Além disso, tais estudantes, quando retornavam para a colônia, vinham não apenas com seus estudos, mas, também, tinham entre suas malas livros “perigosos” que influenciariam os rumos da planejada revolta.

De tal modo, o constante temor da cobrança da Derrama, a compreensão das possibilidades da Capitania (devido à capacitação dos estudos), além de questões filosóficas e políticas que remetiam a autores como Montesquieu (O Espírito das Leis e Cartas Persas), formavam o contexto para que, na década de 1780, fosse discutida a liberdade da Capitania de Minas (entre outras) em relação à coroa Portuguesa.

No grupo daqueles homens posteriormente caracterizados como Inconfidentes, a certeza da cobrança da Derrama vinha acompanhada também da certeza de que a Derrama traria amplo descontentamento nas Minas, produzindo, então, parte das condições necessárias para proceder com o rompimento com Portugal. Obviamente, não se tratava naquele momento em falar de um Brasil livre. A situação era tratada principalmente em termos de Minas e Rio de Janeiro, considerando ainda a possibilidade de que outras capitanias, como a de São Paulo e Goiás, viessem a fazer parte da nova nação. Sob esse aspecto, mais do que a influência de intelectuais franceses, os inconfidentes se inspiravam no exemplo do processo de Independência Americana ocorrida em 1776, quando o grupo formado pelas treze colônias americanas rompeu com a Inglaterra.

Conforme salientado, com a cobrança da derrama, apenas uma parte das condições estaria posta no tabuleiro político dos revoltosos. Por um lado e contra ela, os inconfidentes acreditavam que seria possível um levante que imporia uma ruptura definitiva com os portugueses. Contudo, tal situação apenas resolveria parte do problema, a parte externa, a relação de “dependência” ou “domínio” entre a metrópole e a colônia. De outro modo, seria necessário pensar nas consequências de tal ruptura: a formação de uma nova nação, o que significava instalar um novo governo (com leis independentes da metrópole), organizar a defesa do país ante uma reação de Portugal, bem como outros procedimentos. Depois, ainda restaria implementar os planos que fariam alavancar a nova nação, como a instalação de universidades, etc.

Nesse sentido, as Treze Colônias Americanas possibilitavam bem mais que o simples exemplo de ruptura. Até aquele momento, a noção de República estava um tanto restrita àquelas pequenas extensões geográficas sob certa forma de governo. Nesse período, ainda não se encontravam estados unificados, como posteriormente ocorreu com a Itália. Países com maiores extensões, como a França, seguiam monarquistas. Outros lugares, como Genebra ou ainda “cidades” da península itálica, quando não caíam sob governos estrangeiros, eram confiados à forma republicana. De tal modo, quando as treze colônias americanas fizeram a independência, rompendo com a forma monárquica, instituíram a república e deram ao mundo uma mostra do republicanismo que poderia ser adotado em um país de grande extensão geográfica.

Até aquele momento, ficavam demarcadas as posições de vários filósofos políticos na observação da organização política dos estados. Montesquieu, por exemplo, discutia a possibilidade das repúblicas sob duas circunstâncias: no caso de uma república pequena, ela estaria constantemente sob a ameaça de forças estrangeiras. Não teria poderia suficiente para se defender. No caso de uma república de grande extensão, esta acabaria se corrompendo pelos vícios internos, pela impossibilidade de uma ampla participação política ou, ainda, por não notar na expansão os problemas mesmos problemas que levaram Roma deixar de ser uma república e depois decair em sua forma de império. Restaria, por fim, a possibilidade de uma federação.

O caso dos Inconfidentes se assemelhava mais ao americano do que ao caso francês. O grupo dos inconfidentes, pode-se dizer, seria um tanto heterogêneo em seus interesses e formações: padres, militares, advogados, funcionários públicos e financistas. Grosso modo, seriam divididos em pelo menos três grupos: financistas; ideólogos da possível revolução; e ativistas. Neles, seria possível separar figuras que queriam resolver suas questões financeiras, desejavam pagar menos impostos à coroa ou obter maior liberdade para tratar de seus negócios (uma vez que, para a coroa, era desejado que permanecessem com suas atenções apenas à mineração). Entre o segundo grupo estariam aqueles que, dando maior profusão aos seus estudos, observavam bem o que significava optar por uma determinada forma de governo, elaborar e promulgar uma constituição, pensar a defesa da nação, etc. E por fim, estariam aqueles que se empenharam em promover a revolta, ainda que não fossem movidos por interesses/ganhos pessoais ou por um profundo conhecimento jurídico ou filosófico.

Contudo, não importando em qual grupo estivessem os inconfidentes, a causa republicana ainda era incerta (incerta em todo o mundo). Mesmo entre os grandes pensadores políticos, a monarquia ainda era a forma de governo “mais adequada” quando se pensava em países com certa extensão territorial. Em favor dela (monarquia), o exemplo inglês de uma monarquia constitucional talvez pudesse ser citado como forma mais eficaz e menos ameaçadora à liberdade do povo. Contra os argumentos da monarquia, no contexto mineiro, significaria iniciar uma nova dinastia na colônia ou, de outro modo, trazer da metrópole parte dos membros da família real, o que significaria manter ainda alguma relação com Portugal. Nesse ponto, as discussões entre os inconfidentes possivelmente tiveram que girar em torno da forma de governo, entre uma ala monarquista e alguns outros que pendiam para a causa republicana. E foram estes últimos, possivelmente encabeçados pelo gênio de Tomás Antônio Gonzaga, que se sobrepuseram aos demais.

A opção pela forma republicana, como referido anteriormente, foi influenciada sobremaneira pelos desdobramentos da Independência americana. O grupo formado pelas treze colônias, uma vez procurando obter o apoio à nova nação e mostrar sua firmeza, havia preparado uma publicação em língua francesa na qual faziam saber de algumas constituições das colônias americanas, além de documentos que acreditavam ser importantes para imprimir a ideia de unidade nacional. Assim foi publicado “na” França o Recueil des loix constitutives des États-Unis de l’Amérique (Coletânea das leis constitutivas dos Estados Unidos da América, publicado em 2013 com o título O livro de Tiradentes, sendo nele incluídos três estudos sobre sua recepção na Capitania de Minas), livro que logo chegou também à Capitania de Minas, sendo trazidos para cá por dois ex-alunos da Universidade de Coimbra, um por José Álvares Maciel e o outro por José Pereira Ribeiro.

Dentre os exemplares que vieram para a Capitania de Minas, um deles acabou em posse do Tiradentes que, embora não soubesse ler em francês, o trazia a tiracolo, aproveitando as oportunidades nas quais poderiam lhe traduzir algumas das passagens do livro. Uma vez traduzida parte de seu conteúdo, Tiradentes exprimiu sua preferência e admiração pela constituição da Pensilvânia, cuja acuidade de análise pode demonstrar a presença dos ideais republicanos. Cito alguns dos artigos iniciais da referida constituição:

I – Todos os homens nasceram igualmente livres e independentes; e têm direitos certos, naturais, essenciais e inalienáveis (...);

III – O povo do Estado é o único a ter direito essencial e exclusivo de governar-se e de regular sua administração interna.

IV – Residindo toda autoridade originariamente no povo e sendo, por conseguinte, emanada dele, segue-se que todos os oficiais do governo revestidos da autoridade, sela legislativa, seja executiva, são seus mandatários, seus servidores e lhes devem prestar contas em todos os tempos.

V – O governo é ou deve ser instituído para a vantagem comum, para a proteção e segurança do povo, da Nação ou da Comunidade, e não para proveito do interesse particular de um único homem, de uma família ou de um conjunto de homens que não são mais que uma parte dessa comunidade (...).

 

Retornando à heterogeneidade do grupo dos inconfidentes, sobre a primazia de nomes como Cônego Luís Vieira da Silva, de Cláudio Manoel da Costa ou de Tomás Antônio Gonzaga, a república teria suas chances de prosperar, sobretudo pelas informações que foram repassadas quanto ao feitio das leis por parte daquele grupo, leis essas que teriam sido expostas para alguns, tendo, inclusive, chamado a atenção do Tiradentes. Sobre a primazia do grupo financista, dos devedores da coroa, daqueles que queriam liberdade de produção ou apenas menos impostos, seria possível avaliar um choque e resistência para com a causa republicana, especialmente por essa dar atenção ao bem comum em lugar do interesse particular. Notadamente, nada diferente do que pode ser observado ainda nos dias de hoje, quando os ideais republicanos são deixados de lado em prol do enriquecimento de grupos que se sobressaem ao bem estar comum. Sob a primazia dos ativistas, em especial da figura do Tiradentes, o ideal da república pôde seguir “vivo”. Não obstante, um século depois de seu enforcamento no antigo Largo da Lampadosa no Rio de Janeiro, Tiradentes já havia sido alçado ao panteão dos heróis nacionais, sendo utilizado como exemplo de desprendimento e virtude política (algo comum quando observados os pensadores republicanos). O erro, porém, continua ser utilizá-lo sem qualquer vinculação com o ideal de nação que emergia da proposta republicana, com vistas àquilo que é o interesse de todos da comunidade. E, pelo contrário, associá-lo a grupo/classes com seus interesses próprios.

Seja como for, as propostas do grupo dos inconfidentes, os motivos que estavam presentes em seu projeto de revolta, retornam constantemente à cena política, fazendo-se necessário pensar outras propostas de país. Mais que isso, eles introduziram, ao final do século XVIII, na colônia, ideais políticos: discussões sobre o pertencimento em uma nação livre com sua soberania, questões de igualdade, a liberdade e, a partir dela, a participação política.


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¹ A versão final deste artigo encontra-se publicada no e-book "Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes: reflexões sobre História".



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