17.3.14

Joaquim Silvério escreve uma carta...



No dia 15 de março de 1789 o Governador da Capitania de Minas receberia em seu palácio da Cachoeira do Campo o Coronel Joaquim Silvério dos Reis. O visitante trazia ao Visconde de Barbacena a denúncia gravíssima de que, em Minas, se planejava a liberdade. Alguns dos principais homens da Capitania, chefiados pelo Desembargador Tomás Antônio Gonzaga, reuniam-se secretamente para conspirar e planejar a implantação de uma República independente de Portugal. Crime hediondo que ele, como leal vassalo da Augusta Soberana, considerava-se na obrigação de denunciar. E o faria com riqueza de detalhes.

Depois de ouvir atentamente, o Visconde ordenou que Silvério fizesse a denúncia por escrito. Este documento, assinado na Borda do Campo a 11 de abril de 1789 (anexo), seria o primeiro corpo de delito do processo de inconfidência e desencadearia uma série de denúncias e interrogatórios reunidos em duas devassas que se arrastariam por mais de três anos e que culminariam no enforcamento do Tiradentes a 21 de abril de 1792 e no exílio dos principais envolvidos.

Após a denúncia verbal de Joaquim Silvério, a providência imediata do Governador foi a suspensão da Derrama, a 23 de março de 1789. A Derrama, ou a cobrança unificada e imediata de todos os impostos atrasados era a medida altamente impopular que os inconfidentes aguardavam para deflagrarem a revolução. Sua suspensão desarticulou todo o movimento. O “tal dia do batizado” fora adiado.

Na sequência, o Visconde daria a Joaquim Silvério mais uma missão: aproveitar-se da amizade que o Tiradentes lhe devotava para vigiar os passos do Alferes no Rio de Janeiro e mantê-lo informado de tudo. Ao ordenar esta segunda traição o governador revelou conhecimento do caráter de Joaquim Silvério. O homem era grande devedor da fazenda real, e tudo faria para livrar-se da dívida. Era indivíduo astucioso, ambicioso e sem escrúpulos e se prestaria a qualquer papel para obter vantagens pessoais. Mas, naquele momento, a atributo que mais sobressaia na personalidade do traidor era o cinismo cruel. Diante do representante da Rainha, mesmo sabendo das consequências funestas do seu ato, Silvério simulava preocupação com a sorte de suas vítimas:

Ponho todos estes tão importantes particulares na presença de V. Excia. pela obrigação que tenho de fidelidade, não porque o meu instinto nem vontade sejam de ver a ruína de pessoa alguma, o que espero em Deus que, com o bom discurso de V. Excia., há de acautelar tudo e dar as providências sem perdição de vassalos. O prêmio que peço tão somente a V. Excia., é o rogar-lhe que, pelo amor de Deus, se não perca a ninguém (Autos, v. 1. p. 94-95).


Fina ironia de um sádico conhecedor dos rigores sanguinários do quinto livro das Ordenações Filipinas, com o qual Portugal puniria o crime de Lesa-majestade perpetrado nas Gerais.

Nada além dos interesses pessoais trouxe ao Brasil aquele português, nascido em 1756 na freguesia de Monte Real. Veio aos 20 anos, em busca de riqueza e prestígio social, estabelecendo-se como comerciante no Rio de Janeiro. Posteriormente instalou-se em Minas Gerais onde, no período de 1782 a 1784, foi o contratante dos direitos de entrada, atividade que resultou na pesada dívida de 220:423$149 contraída com a Fazenda Real.

Apesar de qualificado como fraudador e falsificador no processo que lhe movia a Coroa Portuguesa, Silvério desfrutou de grande prestígio no Governo de Luís da Cunha Menezes. O “Fanfarrão Minésio” o autorizou a criar um Regimento de Cavalaria Auxiliar, conferindo-lhe a tão almejada patente de Coronel. Sua sorte mudaria com a posse do novo governador da Capitania. Luís Antônio Furtado de Mendonça, o Visconde de Barbacena, nomeado para o cargo em 1786, dele tomou posse em julho de 1788, e trazia instruções severas, que incluíam a cobrança dos impostos atrasados e das dívidas astronômicas, como a de Silvério. Já em fevereiro de 1789, o Coronel perderia a patente militar com a extinção do seu Regimento. Com base em sua carta-denúncia, foi neste mesmo mês que, em passagem pela casa do Capitão José de Resende Costa, no Arraial da Lage, Silvério soube da Conjuração:

Vindo da revista do meu Regimento, encontrei no arraial da Laje o Sargento-Mor Luís Vaz de Toledo; e falando-me em que se botavam abaixo os novos Regimentos, porque V. Excia. assim o havia dito, é verdade que eu me mostrei sentido e queixei-me ao sargento-mor (...) e juntando mais algumas palavras em desafogo da minha paixão. Foi Deus servido que isso acontecesse para se conhecer a falsidade que se fulmina” (Idem, p. 92). 

Conheceu a falsidade que se fulminava e os nomes dos principais envolvidos, dentre os quais o Coronel Alvarenga Peixoto, o Padre Oliveira Rolim, o Ten. Cel. Freire de Andrade, o Alferes Joaquim José da Silva Xavier e o vigário de São José, Padre Carlos Correia.

O dia 3 de março lhe reservaria mais um golpe. O Visconde de Barbacena o intimou a prestar contas do seu contrato como arrematante dos direitos de entrada, que se resumia no acerto da avultada dívida. Como, para aliciá-lo, os inconfidentes haviam lhe acenado com o perdão da dívida, Silvério vislumbrou na libertação de Minas uma saída estratégica. Se por um lado não era nenhum idealista da causa da liberdade de Minas, por outro, sentia-se acuado pela voracidade da Fazenda Real.

No dia 10 de março dissipou-se a dúvida quando, no arraial da Igreja Nova, Silvério encontra o Alferes Tiradentes.  Ao vê-lo, por considerá-lo amigo e aliado, o Alferes o saúda entusiasticamente dizendo que ia ao Rio, trabalhar por todos. A partida eufórica do Alferes deixou Silvério preocupado. Pensou que a imprudência com que se falava abertamente na revolução poderia colocar tudo a perder e optou por mostrar-se solícito perante a Coroa Portuguesa. A denúncia poderia ser um bom negócio, e assim decidiu seu destino de traidor. Cinco dias depois estava diante do Governador. A sorte dos conjurados estava selada.

Do ponto de vista pessoal, a traição de Joaquim Silvério à causa dos inconfidentes não foi descabida. Como português, foi leal à sua Rainha, embora por interesse. Além disso, não tinha nenhum vínculo afetivo com a terra que justificasse querer vê-la independente e até desprezava os mineiros, a quem considerava “gente turbulenta e ridicularizadora do nome e da gente de Portugal” (JOSÉ, Tiradentes, p.178). Pode-se dizer, também, que obteve êxito em seus propósitos, sendo recompensado pela lealdade demonstrada. Teve um ligeiro percalço, quando no dia 10 de maio foi encarcerado em presídio do Rio de Janeiro por ordem do Vice-Rei Luís de Vasconcelos, mas ao sair da prisão, nove meses depois, receberia pensão vitalícia de duzentos mil réis, o perdão da dívida com a Fazenda Real e o hábito da Ordem de Cristo, dentre outras vantagens.   Retornou a Portugal, de onde veio com a Corte fugitiva em 1808. Tentou estabelecer-se no Rio de Janeiro, mas desistiu depois de sofrer atentados e de ser apontado nas ruas como traidor. Por fim, instalou-se em São Luiz do Maranhão, onde faleceu em 1819, sendo sepultado na igreja de São João, em túmulo posteriormente destruído.

Se a Inconfidência Mineira foi ou não um movimento de apelo popular, se extrapolou ou não as fronteiras de Minas, se foi um devaneio de letrados liderados por um louco, ou o maior esforço de liberdade esboçado no Brasil-colônia, ainda não há consenso, mas, a julgar pelas queixas do próprio Joaquim Silvério, uma coisa é certa: o povo não perdoou o traidor dos inconfidentes.


Referências:

-        JOSÉ, Oiliam. Tiradentes. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1974.
-        Autos da devassa. Vol. 1. Brasília – Belo Horizonte: Câmara dos Deputados/Governo do Estado de Minas Gerais,1976.




A carta-denúncia de Joaquim Silvério dos Reis
(Autos da devassa. Vol. 1. Brasília – Belo Horizonte: Câmara dos Deputados/Governo do Estado de Minas Gerais,1976. p. 91-95)


            Ilmo. e Exmo. Sr. Visconde de Barbacena

Meu Senhor: - Pela forçosa obrigação que tenho de ser leal vassalo à nossa Augusta Soberana, ainda apesar de se me tirar a vida, como logo se me protestou na ocasião em que fui convidado para a sublevação que se intenta, prontamente passei a pôr na presença de V. Excia. o seguinte: - Em o mês de fevereiro deste presente ano; vindo da revista do meu Regimento, encontrei no arraial da Laje o Sargento-Mor Luís Vaz de Toledo; e falando-me em que se botavam abaixo os novos Regimentos, porque V. Excia. assim o havia dito, é verdade que eu me mostrei sentido e queixei-me ao sargento-mor: me tinha enganado, porque em nome da dita Senhora se me havia dado uma patente de coronel, chefe do meu Regimento, com o qual me tinha desvelado em o regular e fardar, e muita parte à minha custa e que não podia levar à paciência ver reduzido à inação o fruto do meu desvelo, sem que eu tivesse faltas do real serviço; e juntando mais algumas palavras em desafogo da minha paixão. Foi Deus servido que isso acontecesse para se conhecer a falsidade que se fulmina.
No mesmo dia viemos dormir à casa do Capitão José de Resende; e chamando-me a um quarto particular, de noite, o dito Sargento-Mor Luís Vaz, pensando que o meu ânimo estava disposto para seguir a nova conjuração pelos sentimentos e queixas que me tinha ouvido, passou o dito sargento-mor a participar- me, debaixo de todo o segredo, o seguinte:
Que o Desembargador Tomás Antônio Gonzaga, primeiro cabeça da conjuração, havia acabado o lugar de ouvidor dessa Comarca, e que, isto posto, se achava há muitos meses nessa vila, sem se recolher a seu lugar da Bahia, com o frívolo pretexto de um casamento, que tudo é idéia porque já se achava fabricando leis para o novo regime da sublevação que se tinha disposto da forma seguinte:
Procurou o dito Gonzaga o partido e união do Coronel Inácio José de Alvarenga e do Padre José da Silva e Oliveira, e outros mais, todos filhos da América, valendo-se para seduzir a outros do Alferes (pago) Joaquim José da Silva Xavier; e que o dito Gonzaga havia disposto da forma seguinte: que o dito Coronel Alvarenga havia mandar 200 homens pés-rapados da Campanha, paragem onde mora o dito Coronel; e outros 200, o dito Padre José da Silva; e que haviam de acompanhar a este vários sujeitos, que já passam de 60, dos principais destas Minas; e que estes pés-rapados, haviam de vir armados de espingardas e facões, e que não haviam de vir juntos para não causar desconfiança; e que estivessem dispersos, porém perto da Vila Rica, e prontos à primeira voz; e que a senha para o assalto haviam ser cartas dizendo tal dia é o batizado; e que podiam ir seguros porque o comandante da Tropa Paga, Tenente-coronel Francisco de Paula, estava pela parte do levante e mais alguns oficiais, ainda que o mesmo sargento-mor me disse que o dito Gonzaga e seus parciais estavam desgostosos pela frouxidão que encontravam no dito comandante e que, por essa causa, se não tinha concluído o dito levante.
E que a primeira cabeça que se havia de cortar era a de V.Excia.; e depois, pegando-lhe pelos cabelos, se havia de fazer uma fala ao povo que já estava escrita pelo dito Gonzaga; e para sossegar o dito povo se havia levantar os tributos; e que logo passaria a cortar a cabeça do Ouvidor dessa vila, Pedro José de Araújo, e ao Escrivão da Junta, Carlos José da Silva, e ao Ajudante-de-Ordens Antônio Xavier; porque estes haviam seguir o partido de V. Excia.; e que, como o Intendente era amigo dele, dito Gonzaga, haviam ver se o reduziam a segui-los; quando duvidasse, também se lhe cortaria a cabeça.
Para este intento me convidaram e se me pediu mandasse vir alguns barris de pólvora, o que outros já tinham mandado vir; e que procuravam o meu partido por saberem que eu devia a Sua Majestade quantia avultada; e que esta logo me seria perdoada; e quê, como eu tinha muitas fazendas e 200 e tantos escravos, me seguravam fazer um dos grandes; e o dito sargento-mor me declarou vários entrados neste levante; e que se eu descobrisse, se me havia tirar a vida como já tinham feito a certo sujeito da Comarca de Sabará. Passados poucos dias fui à Vila de São José, aonde o vigário da mesma, Carlos Correia, me fez certo quanto o dito sargento-mor me havia contado; e disse-me mais: que era tão certo que estando o dito pronto para seguir para Portugal, para o que já havia feito demissão da sua igreja a seu irmão, o dito Gonzaga lhe embaraçara a jornada fazendo-lhe certo que com brevidade cá o poderiam fazer feliz, e que por este motivo suspendera a viagem.
Disse-me o dito Vigário que vira já parte das novas leis fabricadas pelo dito Gonzaga e que tudo lhe agradava menos a determinação de matarem a V. Excia.; e que ele, dito Vigário, dera o parecer ao dito Gonzaga que mandasse antes a V. Excia. botá-lo do Paraibuna abaixo e mais a Senhora Viscondessa e seus meninos, porque V. Excia. em nada era culpado e que se compadecia do desamparo em que ficavam a dita senhora e seus filhos com a falta de seu pai; ao que lhe respondeu o dito Gonzaga que era a primeira cabeça que se havia de cortar porque o bem comum prevalece ao particular e que os povos que estivessem neutros, logo que vissem o seu General morto, se uniriam ao seu partido.
Fez-me certo este Vigário, que, para esta conjuração, trabalhava fortemente o dito Alferes Pago Joaquim José, e que já naquela comarca tinha unido ao seu partido um grande séquito; e que cedo havia partir para a capital do Rio de Janeiro a dispor alguns sujeitos, pois o seu intento era também cortar a cabeça do Senhor Vice-Rei; e que já na dita cidade tinham bastante parciais.
Meu senhor, eu encontrei o dito Alferes, em dias de março, em marcha para aquela cidade, e pelas palavras que me disse me fez certo o seu intento e do ânimo que levava; e consta-me, por alguns da parcialidade, que o dito Alferes se acha trabalhando este particular e que a demora desta conjuração era enquanto se não publicava a derrama; porém que, quanto tardasse, sempre se faria.
Ponho todos estes tão importantes particulares na presença de V. Excia. pela obrigação que tenho de fidelidade, não porque o meu instinto nem vontade sejam de ver a ruína de pessoa alguma, o que espero em Deus que, com o bom discurso de V. Excia., há de acautelar tudo e dar as providências sem perdição de vassalos. O prêmio que peço tão somente a V. Excia. é o rogar-lhe que, pelo amor de Deus, se não perca a ninguém.
Meu senhor, mais algumas coisas tenho colhido e vou continuando na mesma diligência, o que tudo farei ver a V. Excia. quando me determinar. Que o céu ajude e ampare a V. Excia. para o bom êxito de tudo. Beijo os pés de V. Excia., o mais humilde súdito.

 Joaquim Silvério dos Reis, Coronel de Cavalaria dos Campos Gerais.

 Borda do Campo, 11 de abril de 1789.


Texto do sócio Rogério Paiva
Apresentado em reunião, dia 16 de março de 2014.

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