10.2.20

302 anos de Tiradentes: é preciso ‘ouvir’ seus arquivos e fazer pesquisas



David I. Nascimento
sócio do IHGT


“O taubateano João de Siqueira Affonso, depois da descoberta do Sumidouro, que foi o terceiro arraial das Minas, caminhou doze léguas para o Sul e descobriu as minas do Guarapiranga, hoje cidade de Piranga. Não satisfeito com esses descobrimentos, João Affonso, que pretendia, como rezam as crônicas, rivalizar-se com o coronel Salvador Fernandes, veio ter a Ponta do Morro e fez as descobertas das minas de São José...”

Assim começa o texto de Herculano Veloso sobre as “Ligeiras Memórias da Vila de São José”. Obviamente, Herculano Veloso não é um senhor que, por motivos desconhecidos, teria presenciado, ele próprio, a descoberta do ouro em 1702. Nem tão pouco festejou a elevação do Arraial Velho do Rio das Mortes à categoria de Vila, em 19 de janeiro de 1718, a partir do ato de D. Pedro Miguel de Almeida Portugal e Vasconcelos, o então Conde de Assumar. Ainda hoje, é possível que muitos desconheçam a história e os personagens que deram origem ao povoamento do “lado de cá” ou do “lado de lá” do Rio das Mortes e ao estabelecimento da região. Conde de Assumar e Alorna? Tomé Portes d’El-Rey? João de Siqueira Affonso? Quem?... Contudo, basta abrir um ou outro livro, cuidadosamente composto por palavras e datas, para se ater com a dívida que todos nós possuímos com Herculano Veloso e outros tantos pesquisadores dedicados aos arquivos empoeirados e abandonados. Arquivos esses que, acreditem ou não, já foram tratados como se fossem tijolos, jogados de mãos e mãos... e transportados como se fossem papéis velhos a caminho de um aterro sanitário. As janelas deste casarão já o testemunharam.

Expostas essas considerações, cabe dizer que Herculano Veloso faleceu poucos dias após completar 79 anos, em 4 de setembro de 1941. É preciso reafirmar sua condição de ser efêmero para que seja possível responder uma questão:  de que modo Herculano Veloso pôde escrever seu livro sobre a criação da Vila de São José, hoje cidade de Tiradentes? A resposta é simples: a partir da pesquisa que os documentos, que os arquivos, permitem. Os arquivos falam silenciosamente. É preciso dedicar-lhes atenção. Observá-los. Tentar descrevê-los. Algumas vezes, identificar autores, decifrar letras, ligar os pontos de um e outro arquivo. Essa é a tarefa que muitos pesquisadores tomam para si. Assim é que o pesquisador se tornou seu amigo e confidente. Mas não muito confidente, e nem o poderia ser, pois pagaríamos com o preço do esquecimento.

Voltando ao povoamento da região do Rio das Mortes... Por um lado, a recém criada Vila de São José divisava seu território com a Vila de São João del Rei. Por outro, na década de 1750, o território da Vila de São José chegava a divisar com a Capitania de Goiás, “estendendo-se o seu território até o rio Paraíba” (VELOSO, 2013, p. 70), indo até onde hoje é encontrada a cidade de Bambuí. Pela descoberta do ouro que fez com que a Vila de São José prosperasse, ela cresceu em número de habitantes e comércios. Da mesma forma, a crescente povoação em localidades fora da sede e a diminuição do ouro levaram ao declínio do seu território. Assim, a Villa de São José perdeu vários de seus arraiais e, aos poucos, também seu poder político e econômico.

Conforme comenta Olinto Rodrigues, “no extremo da decadência, o município de São José foi suprimido pela Lei Provincial n° 360, de 30 de setembro de 1848, sendo restaurado um ano depois pela Lei 452, de 20 de outubro de 1849”. Dito de outro modo, durante um ano São José del Rei perdeu seu status e voltou a ser de responsabilidade de São João del Rei, a quem pertencia antes de se tornar vila. Com a decadência e “emigração” das famílias abastadas (que foram investir nas plantações de café), a Vila de São José manteve parte de suas construções antigas, o traçado de suas ruas e um modo singular de existência. Por certo tempo, somavam-se a isso os problemas de transporte, a inexistência de água encanada e luz elétrica.

De tempos em tempos, alguma brisa soprava e se enveredava entre as paredes imponentes da Serra São José e corria junto às margens do Rio das Mortes. A brisa seguia ou ia contra as águas, levava para um lado ou para o outro, fazia algo se transformar e a Vila ganhava novo fôlego... assim foi que, em 7 de outubro de 1860, a Vila de São José del Rei tornou-se cidade. Mas os ventos das grandes transformações tinham seu próprio tempo.

Levou mais algum tempo até que os transportes pelo Rio das Mortes ou pelos trilhos da Estrada de Ferro Oeste de Minas viessem a se concretizar. Levou mais quase meio século para que, com a campanha republicada e o uso da figura de Joaquim José da Silva Xavier, o mártir da Inconfidência, a cidade passasse a se chamar Tiradentes, em 6 de dezembro de 1889, logo após a Proclamação da República. Foi preciso ainda mais algumas décadas para que “o conjunto ‘arquitetônico e urbanístico’ da cidade de Tiradentes” fosse tombado em 20 de abril de 1938; foi ainda preciso mais outras tantas décadas para que a cidade fosse descoberta pelo turismo, que trouxe consigo um novo aquecimento de sua economia e, também, a conhecida especulação imobiliária da cidade. Então veio o “esvaziamento” (humano) de seu centro e a perda de parte de sua identidade. Com dificuldade, a conservação da cidade passou a enfrentar o crescimento desordenado e transformação mobiliária.

(como lembrou o sócio Rogério Paiva em uma de suas crônicas mais irônicas e, ao mesmo tempo, tristes, nem mesmo o pobre Cabloco D’Água foi poupado... ele já não faz mais seus passeios pela Viturina: “o Caboclo d'água, certamente sentindo-se abandonado, num dos mergulhos no Rio das Mortes, desapareceu para sempre...”).

Portanto, o que se comemora nesse 19 de janeiro é bem mais que o aniversário de 302 anos de uma cidade, mas também a vida e a morte de tantos ilustres e desconhecidos que fizeram e continuam fazendo parte dela... ainda que suas memórias só sobrevivam nos costumeiros causos. Um Francisquinho do Bar aqui; uma Tunica ali; um Valente (e seu caminhão velho) acolá; uma Sá Cota Veloso por algum lugar... e, claro, o Vicente Veloso (Bolas Pelotas), em cada pedacinho das ruas pelas quais correu atrás daqueles que não falavam sua língua.

Aliás, em outro 19 de janeiro (desta vez, do ano de 1977), comemora-se outro “nascimento”. Nessa data, com o decreto municipal n°200, assinado por Josafá Pereira, foi fundado o Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes. Entre seus membros à época, deve ser destacada a figura ímpar do sócio Eros Miguel da Conceição, cuja capacidade, cuidado e inventividade atestam a falta que ele nos faz, constantemente. Desde sua criação, foram feitas inúmeras exposições, concursos, palestras e sessões solenes. Foram inúmeros os sócios que vieram e que se foram. Pessoalmente, se me fosse pedido para resumir o IHGT eu não o poderia fazer sem citar o artigo 2° de seu Estatuto: “promover estudos e investigações relativas à história, geografia, etnografia, arqueologia e ecologia...”; “divulgar e defender o acervo histórico e paisagístico da região...”; “promover cursos, conferências, seminários, mesas redondas-, oficinas, exposições e trabalhos de campo sobre os assuntos de seu interesse”; “manter publicação para divulgar trabalhos e documentos históricos referentes ao município de Tiradentes e à região do Rio das Mortes, e que representem o fruto de estudos e pesquisas do IHGT”;... para citar alguns de seus itens. Para dizer “a verdade”, o estatuto do IHGT traz consigo nobres iniciativas que nos últimos tempos têm sido perseguidas pelas posições obscurantistas. Sobretudo, o incentivo à pesquisa e a promoção da cultura e educação deviam ser constantes, não apenas em nossa instituição. Mas, infelizmente, mesmo com os cortes de gastos sofridos pelas universidades, mesmo com as críticas erigidas às artes e cultura, muito pouco tem sido dito pelas autoridades que deveriam ter a obrigação de fazê-lo. Não adianta nos reunirmos em comemoração ao aniversário da cidade e do IHGT se não nos solidarizamos com tantos estudantes, pesquisadores, professores e funcionários de instituições como a UFSJ, por exemplo. Torna-se uma comemoração vazia, visto ser justamente por meio das defesas e incentivos a cultura, arte, educação e pesquisa que a cidade e o IHGT podem afirmar suas histórias e identidades.

Ainda sobre o IHGT, graças à cooperação com outras entidades (como reza seu estatuto), ele pôde ofertar à cidade de Tiradentes um dos mais importantes presentes nos últimos dez anos: o Plano Diretor. Este, se bem observado, pode levar a cidade à tantas outras comemorações... tratando, seu povo com justiça e cuidado. Possibilitando o crescimento que não descaracterize a cidade e não agrida seus bens históricos e ambientais. Com isso, é preciso reconhecer que o Plano Diretor não pode se tornar um arquivo empoeirado, esquecido e ouvido por poucos. Fazê-lo gritar e ser ouvido é uma das formas de homenagear e parabenizar os aniversariantes do dia, IHGT e Tiradentes.


Dedicado aos sócios Lucy Fontes Hargreaves, Olinto R. dos Santos Filho e Rogério Paiva.


Referências Bibliográficas

SANTOS FILHO, Olinto Rodrigues dos. Guia da Cidade de Tiradentes: História e Arte. 3ª ed. Belo Horizonte: Paulinelli, 2012.
SANTOS FILHO, Olinto Rodrigues dos. A Matriz de Santo Antônio em Tiradentes. Brasília, DF: IPHAN/Monumenta, 2010.
SANTOS FILHO, Olinto Rodrigues dos. Tiradentes: Monumentos preservados. Tiradentes: IHGT, 2015.
VELOSO, Herculano. Ligeiras Memórias da Vila de São José nos tempos coloniais. 3ª ed. Tiradentes: Editora IHGT, impresso na Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 2013.



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