18.3.24

Tiradentes, Modernistas e Semana Santa

 

Texto de Olinto Rodrigues dos Santos Filho



Blaise Cendrars

Em 1924, há exatos 100 anos, o poeta franco-suíço Blaise Cendrars (1887-1961), pseudônimo de Frédéric Louis Sauser, visitou o Brasil a convite de um grupo de intelectuais paulistas promotores do modernismo na literatura e nas artes no país.

O convite partiu de Paulo Prado (1869-1943) que era casado com a francesa Marie Lebrun, ou Marinette da Silva Prado (?-1983) após o casamento. Paulo Prado, junto com D. Oliveira Guedes Penteado, foi uma espécie de mecenas da Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922, evento que mudou os rumos das artes plásticas e literatura no Brasil da época.

Blaise Cendrars era uma espécie de guru dos poetas modernistas, tido como inspirador do grupo paulista do qual faziam parte Mário de Andrade (1893-1945), Oswald de Andrade (1890-1954), Menotti Del Picchia (1892-1988).

Pois bem, após recepcionado no Rio de Janeiro pelos intelectuais no próprio navio onde estavam Graça Aranha (1861-1931), Ronald de Carvalho (1893-1935), Américo Jacó Prudente de Morais (neto) (1885-1953), Guilherme de Almeida (1890-1960) e o caçula, no dizer de Cendrars, Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982).

Depois das aventuras pelo Rio de Janeiro, o poeta seguiu para São Paulo, onde foi recebido pelo grupo de lá, e do qual se incluíam Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Sérgio Milliet (1898-1966), Tácito de Almeida (1889-1940), Couto de Barros (1896-1966), Rubens Borba de Moraes (1899-1986), Luiz Aranha (1901-1987), Antônio Alcântara Machado (1901-1935), além, é claro, da pintora Tarsila do Amaral (1886-1973) e D. Oliveira Guedes Penteado (1872-1934).

Blaise Cendrars havia perdido um braço durante a Primeira Guerra (1914-1918) e teve problemas com a polícia na hora de desembarcar no porto de Santos, pois “o Brasil não precisava de mutilados”.


Blaise Cendrars



Parte do seleto grupo de intelectuais resolveu fazer uma viagem à Minas Gerais durante a Semana Santa para ver a cidades antigas, a arquitetura colonial e a arte barroca, isso por influência do Mário de Andrade, que já tinha vindo à Minas em 1919, onde se avistou em Mariana com o poeta simbolista Alphonsus de Guimarães (1870-1921).


Hotel Macedo onde se hospedaram os modernistas.


Acompanhando o poeta Modernista franco-suíço, vinham na caravana a mecenas D. Oliveira Guedes Penteado, Tarsila do Amaral, René Thiollier (1882-1968), Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Oswald de Andrade Filho (Nenê) (1914-1972) e Godofredo Silva Telles (1888-1980) fizeram uma longa viagem de trem até Divinópolis e, depois, seguiram para São João del-Rei, onde se hospedaram no Hotel Macedo, e se registraram por brincadeira com profissões e origens estapafúrdias.


Foto da viagem modernista em São João Del Rei, 1924.



Caderneta de viagem de
Mário de Andrade,1924.


Já no dia 19 de abril estariam em Tiradentes, pois anotaram seus nomes em uma caderneta de Mario de Andrade em número de sete (7), datado e com o nome antigo da cidade, “São José d’El Rey”. Certamente, na Sexta-feira da Paixão, no dia 18 de abril, à noite, eles já estavam em Tiradentes, pois, Blaise Cendrars, no conto “O Lobisomem de Minas”, incluído no livro “Elogio da vida perigosa” (Éloge de la vie dangereuse, 1926), escreveu “a procissão da noite de Páscoa parava sob as janelas da prisão. Algumas centenas de negros na praça. Todos de camisolas e com velas na mão. As mulheres velhas e criancinhas usava máscaras. Um grupo de jovens vaqueiros puxavam um burro sobre o qual estava armado um boneco cheio de pólvora, de fogos de artifício, de foguetes, de petardos. Era a efígie de Judas Iscariotes que levavam para fora da cidadezinha para queimá-la e fazê-la explodir. De pé sobre um estrado forrado de pelúcia, uma jovem corcunda cantava o lamento de Verônica. A sua voz pura, cristalina, aflautada e comovida, se juntava a voz grave de uma mulher alta, macilenta, anêmica, grávida. Um portuguesinho barrigudo e um gigantesco e evangelista negro faziam o contraponto às duas mulheres. Depois de cada estrofe, a corcunda exibia à multidão o pano branco que traz a marca do lastimoso rosto de Nosso Senhor e os negros caiam de joelho e se perdiam em orações”. Aqui se vê claramente que o escritor fez uma simbiose do cortejo do Judas pela cidade, no Sábado de Aleluia, tradição esta que ainda participamos até os anos 1990, e a Procissão do Enterro, que parava na frente do Rosário e Cadeia para o canto da Verônica, que exibe um lenço com a face de Cristo em sangue. As outras vozes são das Marias “Heu”, que cantavam após a Veronica. O nosso escritor ainda conclui escrevendo que “quando a procissão voltou a andar e os círios balouçantes desenhavam um leque de cruzinhas móveis com as grades da janela sobre o teto da cela...”, referindo-se a Cadeia onde ele estava conversando com um preso.


Cadeia de Tiradentes onde Cendrars
encontrou o preso que lhe inspirou
o conto O Lobisomem de Minas



Inscrição em francês na fachada da Cadeia. Será de Cendrars?


É na cadeia que Blaise Cendrars encontrou um ou dois pesos que mataram um homem e comeram o seu coração, o que motivou o conto acima citado. O preso ainda ofereceu a ele um punhal, o qual dizia ser a arma do crime. O autor diz que o episódio tinha transcorrido na estação da estrada de ferro, mas parece ter sido uma história mais rude. O conto foi datado de 15 de março de 1926, portanto dois anos depois. Também Carlos Augusto Calil, em artigo publicado na Folha de São Paulo, trata do caso sobre o referido prisioneiro quando da visita dos modernistas à Tiradentes: “A procissão do Senhor Morto, na noite da Sexta-feira da Paixão em Tiradentes, é o ponto alto da viagem. Mário, Oswald e Blaise ficam marcados pelo espetáculo religioso. No sábado de Aleluia, ainda em Tiradentes, quando o grupo passava pela cadeia local, um prisioneiro que estava atrás da janela gradeada chama a atenção dos passantes, pedindo intercessão junto às autoridades para aliviar a sua pena. Cendrars pergunta-lhe que crime o havia condenado e ele confidencia que, com seu punhal, havia matado o rival, arrancado seu coração e comido. Em estado de exaltação, o poeta francês exclama "Quelle merveille" [Que maravilha!], expressão que repetia com frequência, para irritação de Mário de Andrade”.


Cadeia de Tiradentes no filme de
Carlos Augusto Calil
"A aventura Brasileira de Blaise Cendrars"




Mário de Andrade, no verso da folha de sua caderneta de viagem, onde assinaram em 19 de abril, rascunhou uns versos que nunca publicou:

“Endexas do preso

Havia um preso em S. d’El Rey

Há dois anos, um mês e um dia

Que estou preso em S. José d’El Rey

Si comi o coração dum homem

Si bebi o seu sangue quente

Que tem os outros com isso?”

 

Autoretrato de Tarsila do Amaral


Já no final da vida, em 1971, Dona Tarsila do Amaral vai relembrar o episódio do preso na cadeia de Tiradentes entrevista-depoimento feito em outubro, no seu apartamento da Rua Albuquerque Lins, em São Paulo. Depois de lembrar que a viagem foi de trem, recorda: “em Tiradentes, passamos lá pela cadeia. Dois homens presos, mas assim na altura da janela mesmo, ficaram conversando conosco. Então Cendrars perguntou: ‘por que estão presos esses homens aqui?’ Um outro soldado que estava assim ali do lado contou: ‘eles mataram um homem... depois comeram... arrancaram o coração e comeram’. Imagina que coisa horrível! Cendrars então falou: ‘Quelle Merveille’. Que tudo para ele era ‘Quelle Merveille’! Ele achou estupendo isso, foi justamente o que ele pensou ele dizia ‘Quelle Merveille’”. Tarsila iria falecer logo em 1973, sendo sua última lembrança da viagem. Ela ainda diz que ele “achou uma beleza também é Verônica que levantava e mostrava a santa face”. Não fica claro se a Verônica foi vista em São João del-Rei ou em Tiradentes, mas, a julgar-se pelo conto do Lobisomem de Minas e pelos desenhos de Tarsila, cremos ter sido em Tiradentes, onde o poeta se encantou também pelo Canto chão. 

Desenho a lápis de Tarsila do Amaral feito em 1924 em Tiradentes
 que foi do acervo de Yves Alves. Aqui se vê a rua Direita,
o Púlpito do Rosário, um lavabo e outros estudos.


Rua Direita com sobrado de José Ribeiro ao fundo, hoje desaparecido.


Tarsila registrou em uma folha de papel a lápis alguns “figurados” da Semana Santa, como o Centurião, como nós ainda conhecemos, São João Evangelista, os escadinhas e carregadores do esquife, além de tocheiros e as lanternas de Nossa Senhora das Dores. Ainda aparecem em outra folha um desenho da Rua Direita e o púlpito do Rosário. O desenho é assinado e pertenceu a Yves Alves, que já nos emprestou a obra para uma exposição, hoje já não sabemos o seu paradeiro. No mesmo dia, certamente, Tarsila desenhou o conjunto urbano com a Matriz ao alto, onde se identifica a cadeia, o fórum e a Igreja da Trindade. Embaixo, desenhou duas crianças e um perfil de homem. Assinou T. 24. Vê-se que é um estudo para um quadro, pois ela escreveu em certa parte a palavra “rosa”.


Carregador do esquife
do Senhor Morto
no desenho de
Tarsila do Amaral.



Centurião


Escadinha



S. João Evangelista



Figurados da Semana Santa em Tiradentes desenhados
por Tarsila do Amaral,1924.



Tiradentes por Tarsila do Amaral, 1924.



Não sabemos a quem pertence esse desenho muito conhecido em Tiradentes. Portanto, se Tarsila desenhou cenários da procissão do enterro, é porque eles estavam em Tiradentes nesse 18 de abril de 1924, pelo menos à noite, e voltaram no sábado, pois viram o cortejo do Judas pela cidade.

Outra curiosidade é ter Mário de Andrade comprado um quadro a óleo representando São João Evangelista e o vendedor o ter feito acreditar que tinha pertencido ao padre Toledo, e anotado no verso com uma letra do fim do século XIX e início do XX: “Rdo Padre Toledo/ S. Je d’El Rey 2-9-1805”. Ele se referiu a compra de um quadro em Tiradentes em crônica de Malazarte e ainda diz que Tarsila comprou uma imagem de Sant’Ana.


Quadro comprado por Mário de Andrade
em Tiradentes em 1924, IEB/ECA /USP.



Depois de hospedado em São João del-Rei, o grupo excursionou por Ouro Preto, Mariana, Sabará e Congonhas, sempre de trem, e vão a capital do estado, onde se encontram com grupo Modernista e reforça a amizade já firmada entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade.


Grupo dos modernistas em uma igreja
de Minas não identificada,1924


Essa caravana deixou em Mário de Andrade uma profunda impressão, e este passou a valorizar as obras do passado brasileiro, que depois vai desaguar na criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), hoje IPHAN, instituição em que tive a honra de trabalhar 35 anos e lá me aposentar. Mário foi encarregado de elaborar o ante projeto do SPHAN, e foi seu representante em São Paulo, posteriormente escreveu sobre o Aleijadinho.

Texto sobre a exposição que montei
no centenário de Mário de Andrade,1994.



Mas, voltando à Tiradentes, ainda em 1928, Mário escreveu a Manuel Bandeira: “acho imprescindível vocês irem também a São José del Rei que fica pertinho de São João del Rei. A Matriz de lá é magnífica por dentro e das mais luxuosas. O quadro que esconde o altar-mor, retábulo móvel, é uma obra-prima do primitivismo”. Mário se refere ao painel do “Milagre da burra”, que fechava a boca do camarim até 1972, quando foi retirado. O escritor o viu com muitas repinturas, e por isso o seu primitivismo hoje não identificado na pintura agora colocada na parede da nave, diante do órgão.

Anos depois, Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-1969), escolhido para presidir o SPHAN por quase toda sua vida (1936-1968), conta, em carta a Mario de Andrade, datada de 4 de novembro de 1937, que veio visitar São João Del Rey e Tiradentes junto com sua esposa, dona Graciema Melo Franco de Andrade, e Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990), também com sua esposa.


Visita de Rodrigo Melo Franco de Andrade ao arcebispo de
Mariana D. Helvécio Gomes de Oliveira



Na correspondência registrou que “conheci a espantosa Matriz de Tiradentes, que eu não conhecia ainda, revi a Igreja de São Francisco de sua predileção,assim como o Carmo e a esquisita Matriz de São João”.

 

Bibliografia

ANDRADE, Mário de; ANDRADE, Rodrigo M. F. Correspondência Anotada. Notas de Clara Andrade Alvim e Lélia Coelho Frota. Organização de Maria de Andrade. São Paulo: Todavia, 2023.

BATISTA, Marta Rossetti. Religião e magia, música e dança, cotidiano. In: Coleção Mário de Andrade. São Paulo: Edusp; Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo, 2004.

CALIL. Carlos Augusto, Blaise. Há 100 anos modernista Blaise Cendrars chegava ao Brasil. Folha de S. Paulo, São Paulo, 05 fev. 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2024/02/acaba-de-chegar-ao-brasil-o-belo-poeta-frances-blaise-cendrars.shtml

CENDRARS, Blaise. Etc…, Etc… um Livro 100% Brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1976.

COELHO FROTA, Lélia. Tiradentes: Retrato de Uma Cidade. São Paulo: Editora Bem-Te-Vi, 2005.

EULÁLIO, Alexandre. A aventura brasileira de Blaise Cendrars: ensaio, cronologia, filme, depoimentos, antologia. São Paulo, Quíron; Brasília, INL, 1978.

SANTOS FILHO, Olinto Rodrigues dos. Viagem Modernista. Folheto da Exposição da Secretaria de Turismo de Tiradentes. 15 de janeiro a 20 de fevereiro de 1994. Centenário de Mário de Andrade. Promoção do Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes.

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